Watkins Glen, 2/3 de Outubro de 1970
Na calada de uma noite sem Lua daquele principio de Outono, naquele paddock de terra batida no "countryside" de Nova Iorque, e misturados entre os carros das equipas, estavam alguns camiões identificados com as marcas de pneus por lá andavam, especialmente as americanas. A Firebug, declarada rival da Greatyear na categoria máxima do automobilismo, tinha trazido durante a noite um camião cheio de pneus. Pela madrugada, os responsáveis da Firebug esperavam pela chegada de um camião especial, com um material que deveria ser protegido dos olhos indiscretos. Quando este chegou, já depois da meia-noite, tinham descarregado discretamente esses pneus para dentro das boxes, e cobertos com um pano negro, tal como a Greatyear tinha feito no dia anterior.
Ao longe, de forma discreta, um responsável da Greatyear via de longe as movimentações, para saber que tipo de pneus eles traziam. A grande suspeita era que tinham os pneus slicks deles, mas provavelmente era mais uma manobra desesperada do que propriamente um contra-ataque com pés e cabeça. Mas sabiam que com isso, a Ferrari tinha mais hipóteses de contrariar a superioridade da Apollo, pois o motor V12 poderia dar uma ajuda.
Depois de ver os homens da Firebug a descaregar o camião, o responsável da Greatyear saiu discretamente dali e voltou ao hotel, para comunicar ao seu chefe as movimentações que tinha visto no paddock. Ele ouviu o que tinha a dizer, pegou no telefone e ligou para Nova Iorque. Qual operação de espionagem, falou em código:
- Boa noite, daqui fala Maxwell Smart, disse, referindo à personagem da famosa série cómica que passava na TV.
- Boa noite. Os chocolates negros já chegaram.
- Otimo. Quando é que chega a sobremesa?
- A meio do almoço, se perferir.
- Tentem chegar dez minutos depois de começar a refeição. Terão um forno com dois cozinheiros à vossa espera. Sejam discretos, queremos uma excelente sobemesa.
- Entendido, sr. Smart. Tenha uma boa noite.
- Até amanhã.
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Watkins Glen, Sábado, 3 de Outubro
Aquele dia amanhecera como o dia anterior: sol e algum calor, típico de um final de Verão naquela parte da América. A paisagem à volta estava a encher-se de árvores com folhas castanhas e vermelhas, típicas de um Outono já instalado no calendário, mas que ainda dava os seus primeiros passos.
Com o avançar da manhã, toda a gente começava a dar as suas primeiras voltas para ver como andavam os seus carros após terem sido feitas as devidas revisões. Com mais ou menos problemas, o treino decorria normalmente, com este e aquele problema, devidamente assinalado pelos comissários de pista. Todos tinham os olhos nas boxes da Apollo, Matra e Ferrari. A equipa americana tinha um novo tipo de pneu e surpreendera muita gente, conseguindo o devido destaque nas noticias. Toda a gente sabia que eles poderiam ser um "joker" na tentativa da Ferrari de retirar o troféu de campeão das mãos de um piloto morto, e esta interferência nos planos era mau de todo. Contudo, toda a gente sabia que a Firebug era a fornecedora de pneus da Ferrari, e foi por isso que eles descarregaram os seus pneus de forma secreta: eles tinham trazido da fábrica uma série de pneus "slicks", que não eram mais do que pneus sem rasgos, como existiam anteriormente. Mas eles contavam com a potência dos seus V12 para poderem igualar, senão superar, os Apollo.
E foi por isso que a Greatyear os tinha mandado vigiar. Sabendo que poderia haver um contra-ataque, ele tinha trazido um conjunto de pneus especiais, que estavam em Nova Iorque à espera de novas ordens. Quando ele disse para os trazer naquela manhã, não eram mais do que um composto ultra-mole e ultra-rapido, cuja pouca duração servia o suficiente para que o piloto que as "calçasse" alcançasse tempos muito superiores ao normal. Só havia um contra: nunca tinha sido usado num ambiente de circuito. Mas o pessoal da Greatyear estava confiante.
Na Apollo, Pete, o homem da Goodyear e os pilotos conferenciavam na sua caravana, na companhia de um elemento que não era visto há muito tempo por ali: Michael Delaney. Os meses que passara a filmar o seu épico automobilistico sobre as 24 Horas de Le Mans tinham-lhe consumido muito do seu tempo, e não tinha acompanhado como devia as actividades da equipa. A última vez que toda a gente tinha visto Michael tinha sido em Junho, no funeral de John O'Hara. Agora, que a montagem estava terminada e estava a preparar a estreia do seu filme nos cinemas americanos, tinham algum tempo para visitar o seu amigo Pete e ver os pilotos que guiavam os seus carros. E tinha gostado do que vira.
Pelo meio-dia, começou a sessão. Logo nos primeiros minutos, a Ferrari calçou os Firebug sem rasgos e conseguiu tirar dois segundos aos seus tempos do dia anterior, e cedo igualavam os Apollo.
- Andas preocupado com o que estão a fazer? perguntou Michael Delaney.
- Era o que esparavamos, dizia Pete.
- Confias no que a Gratyear te diz?
- Claro, agora que tenho estes pneus, sim.
- Espero que ganhemos esta corrida, Pete.
- E iremos ganhar, preparamos tudo para esta ocasião. E estes pneus também nos vão ajudar a subir ao lugar mais alto do pódio...
Imediatamente a seguir, com os pneus calçados, Alexandre de Monforte liga o motor e sai das boxes com o objectivo de fazer um tempo tão bom ou melhor do que o de ontem. Já havia borracha no chão, e usando ao máximo a linha que todos seguiam, tentava fazer melhor do que os seus adverários. Após a volta de aquecimento, ele conseguia responder sendo 0,2 segundos mais lento do que os seus tempos do dia anterior, mas conseguia ser um pouco superior ao de Patrick Van Diemen, o mais rápido dos carros da Ferrari. Mas dez minutos mais tarde, Van Diemen faz uma volta-canhão de 1.11,8 segundos, voltando ao topo da tabela de tempos, e espantando todos os que estavam a assistir ao duelo no circuito.
E era assim à medida que os treinos iam avançando: os Ferrari, com os seus motores V12, compensavam em potência aquilo que a maior aderencia ao solo dos pneus Greatyear que calçavam os carros de Pete Aaron. Monforte e Van Diemen davam o seu melhor para ficar um à frente do outro. E a mesma coisa acontecia aos outros carros da Ferrari e da Apollo: Guarini e Solana trocavam o terceiro posto por várias vezes, e De Villiers era quinto, mas somente porque Bernardini não tinha feito um bom arranque, queixando-se da má caixa de velocidades que tinha no seu carro e lhe impedia de vez em quando de meter a quarta velocidade, por exemplo. Até tinha sido superado pelo Matra de Carpentier e pelo BRM de Turner, estando com o sétimo melhor tempo.
Com todos os olhos postos no circuito, ninguém tinha notado na chegada de um carro e uma carrinha ao "paddock" de Watkins Glen. Era a carrinha da Greatyear, e logo, três funcionários diligentes estavam à espera dela para poderem carregar o mais depressa possivel esses pneus para dentro da boxe da Apollo. Em menos de cinco minutos, a carrinha foi esvaziada e os pneus estavam prontos para serem calçados pelo primeiro que as usasse. E os pilotos estavam avisados daquilo que vinha aí, falando em código:
- Quando é que chega o chocolate negro? perguntava Teddy.
- Termos os especiais a meio do treino não nos pode afectar a nossa condução? inquiria De Villiers.
- Dois segundos? OK, assumo o risco dos ditos cujos. Vai ser interessante ver a cara dos outros, contemplava um curioso Alexandre.
E isso aconteceria nos vinte minutos finais dessa qualificação. De repente, Philipp De Villiers chega às boxes e pergunta pelos "especiais". Quando lhe dizem que eles já chegaram ao circuito e estão prontos para serem calçados, sem hesitar, pede para colocar. Chama Pete e o técnico da Greatyear e pergunta:
- Sempre duram as três voltas?
- Pelos nossos calculos, vão ser eficazes durante três voltas, fora o de lançamento.
- E é com isto que abaixo da casa de 1.10?
- Em teoria... sim.
- Só consigo ter uma volta em condições?
- Claro, se não apanhares tráfego...
- OK, metam-nos.
Os pneus já estavam calçados no carro de De Villiers. Depois de uma rápida verificação no carro, o sul-africano ligou de novo o seu carro, colocou a viseira do capacete em baixo e arrancou dali. Primeiro devagar, para deixar passar um carro mais rápido, e depois acelerou, rumo ao desconhecido. Sentia-se como se fosse uma cobaia humana, mas sabia que lhe tinham concedido a melhor oportunidade de se mostrar ao mundo, e pedia para que fosse cumprida sem falhas. "Uma volta limpa, só quero uma volta limpa", implorava o sul-africano.
Depois de descer para a direita, para depois começar a subir, numa guinada à esquerda, De Villiers começou a dar o máximo, levando o carro ao seu limite. A sua concentração estava no seu pico, pois sabia que cada segundo, cada metro feito dentro da trajectáoria ideal contava. E estava cheio de curiosidade em saber o que estes pneus eram capazes. Depois de de uma passagem pela meta para aquecer os pneus e preparar-se para a "tal" volta, os cronómetros começaram a contar e ele entrou naquela que era a volta mais importante da sua vida.
Na sua boxe, era o silêncio. Os outros dois carros estavam nas boxes, e Alexandre notou que toda a gente olhava para Teresa e Pam. Ao ver, perguntou a Alex Sherwood, que estava ao seu lado:
- Quem é?
- Phillip, com o chocolate negro.
- Ahhh... OK. Vou torcer por ele. Porque a seguir vou ser eu.
Todos esperavam por ele. A respiração estava suspensa naqueles lados, e até Alexandre olhava para a sua Teresa e Pam, ambas com os cronómetros na mão. Os segundos pareciam que passavam mais devagar do que o normal, e enquanto que uns olhavam para os seus cronómetros, outros olhavam para o inicio da curva, para ver quando é que De Villers aparecia. Quando isso aconteceu, todos susteram a respiração até que ele passasse pela meta. Parecia que o mundo tinha parado até que no momento a seguir, Teresa gritou:
- CONSEGUIU! 1.09,8. Nós conseguimos.
Alexandre ouviu-a e disse sorrindo a Sherwood:
- Quem diria? O "chocolate negro" faz milagres, hehe. Alex, quatro desses no meu carro, se faz favor.
- É para já, Alex, respondeu com um sorriso largo.
A seguir, o "speaker" de serviço anunciou a boa nova aos espectadores: "Concorrente do carro numero quinze, Philipp de Villers, da Africa do Sul, fez o tempo de 1.09,8 segundos. É um novo recorde da pista de Watkins Glen". Na boxe da Apollo era o êxtase. Acreditavam que tinham conseguido quebrar a resistência dos Ferrari e que tinham ganho o duelo daquela tarde.
Poucos minutos depois, Alexandre saia para a pista e fazia 1.10,2, e logo a seguir, Teddy marcava 1.10,3 segundos. Atrás, Van Diemen não conseguia melhorar o seu 1.11,8 do inicio da sessão, mas para seu consolo, estava à frente de Carpentier, que com o seu Matra era apenas sétimo, com 1.13,6 segundos, superado pelo BRM de Bob Turner e pelo segundo Ferrari de Michele Guarini, mas na frente do Jordan de Pieter Reinhardt, do segundo Matra de Pierre Brasseur e do terceiro Ferrari de Toino Bernardini. No final do dia, a Apollo tinha conseguido o monopólio das primeiras posições da grelha, e todos nas boxes celebravam o feito, mas mesmo com a imprensa à sua volta, pois queriam saber o segredo do sucesso deles, toda a gente tinha plena consciência de que tinham feito apenas metade do percurso. Amanhã, a história poderia ter um final diferente.
(continua)