DO PASSEIO À COMPETIÇÃO
A 2 de novembro de 1894, o Conde De Dion convoca uma reunião na sua casa de Paris. Nela estão presentes o diretor do "Le Petit Journal", Pierre Giffard, e os responsáveis da Peugeot, Panhard e Levassoir e da Serpollet, bem como o Conde Gaston de Chasseloup-Laubat, entre outros entusiastas, com um objetivo único e ambicioso: promover uma corrida de quase 1250 quilómetros entre Paris e Bourdéus, e volta. Não haveriam juízes e o único critério seria a velocidade pura.
Uma comissão foi criada, e os regulamentos foram reduzidos ao mínimo indispensável: os carros teriam de transportar mais de duas pessoas e poderiam ser guiados por mais de um condutor. Os mecânicos poderiam fazer reparações na estrada, desde que transportassem as peças consigo, e desde que fossem supervisionados por um comissário de pista. E haveria um tempo limite de cem horas para completar a corrida. Os carros teriam de ter quatro lugares, embora aceitariam inscrições de dois lugares.
Como sempre, o "Le Petit Journal" divulgou a competição, e isso atraiu patrocinadores endinheirados. Dois deles vieram dos Estados Unidos: o editor James Gordon Bennett e William K. Vanderbildt contribuíram com algum dinheiro, para um fundo que atingiu a módica quantia de quase 70 mil francos, dos quais metade seria atribuído ao vencedor. Bennett e Vanderbildt tornaram-se entusiastas dos automóveis e esperavam que isso pegasse nos Estados Unidos, dado o potencial que o país tinha de abraçar a nova tecnologia automóvel.
Ao todo, inscreveram-se 30 automóveis, divididos entre gasolina e vapor, com duas inscrições de veículos elétricos. Todos os principais participantes da corrida Paris-Rouen estiveram presentes: De Dion trouxe o seu carro a vapor, Auguste Doriot e Louis Rigoulot inscreviam um Peugeot cada um (com este a levar um carro de dois lugares), Leon Serpollet trouxe também o seu carro, e Amedée Bolée inscreveu também o seu veículo a vapor. Panhard e Émille Levassoir levaram os seus carros consigo, com este último a ter uma particularidade: o seu carro levava apenas dois lugares. E ele iria fazer toda a distância... sozinho, dado o grande conhecimento que tinha do carro.
Havia vários Peugeots inscritos. Um dos carros, de quatro lugares, pertencia a Paul Koechlin, membro de uma proeminente família alsaciana da área têxtil, e outro Peugeot de quatro lugares estava inscrito, por parte de um comerciante de pneus vindo da pequena cidade de Clermont-Ferrand. Chamava-se André Michelin e a razão pelo qual o fazia era para testar a tecnologia do pneu de borracha nos automóveis. Poucos anos antes, em 1889, tinha decidido investir na tecnologia dos pneus, quando um ciclista parou na oficina no sentido de efetuar uma reparação. Nessa altura, os pneus eram de borracha sólida, mas os ciclistas tinham problemas constantes nesse sentido. André Michelin ficou interessado na tecnologia, e quando soube da invenção da câmara de ar por parte do médico irlandês John Dunlop, no ano anterior, começou a investigar e a construir protótipos nesse sentido até que, em 1891, patenteou a sua tecnologia, que facilitava a mudança de pneus, retirando a câmara de ar, tornando mais fácil a sua reparação.
Para Michelin, o automóvel representava um desafio novo para os seus pneus, e estava determinado a os experimentar nestas condições, pois era outra industria que despertava.
Ao todo, inscreveram-se 30 carros, mas no dia da corrida, a 11 de junho, apenas 21 carros estavam presentes. Dezasseis usavam já motor de combustão interna, seis eram movidos a vapor, um era elétrico, e entre eles, ainda se encontravam dois motociclos. Depois de terem feito uma parada do Arco do Triunfo até à Praça de Armas, em Versailles, alinharam à partida, partindo em intervalos regulares.
Rigoulot foi o primeiro líder, mas na zona de Orleans, De Dion assumiu a liderança, com o seu carro a vapor, seguido por outro carro a vapor, de Bollée. Contudo, quem observava tudo à distância era Émile Levassoir, que não os deixava fugir. Contudo, antes de chegarem a Tours, De Dion estava fora de prova e Bollée atrasava-se. Levassoir assumiu a liderança e fazia uma boa média de 26 km/hora, alcançando a localidade de Ruffec (200 km a norte de Bordéus) pelas 3:30 da manhã. Quando chegou lá, encontrou o seu condutor substituto... na cama. Rigoulot e Doriot vinham a seguir, mas tinham já um atraso superior a duas horas.
Levassoir decidiu continuar, e quando chegou a Bordeus, pelas 10:40 da manhã do dia a seguir, simplesmente deu meia volta e encetou o caminho de regresso. Quando foi a vez da dupla perseguidora chegar à cidade, já Levassoir tinha um avanço de... três horas e meia. Vendo que o carro se portava bem, e ele não apresentava sinais evidentes de cansaço, decidiu fazer o percurso totalmente sozinho, o que é um feito notável, mesmo agora.
No final, Levassoir completou o percurso em 48 horas e 48 minutos, e foi recebido na meta, situada na ponte Maillot, por uma multidão em delírio, que felicitava o vencedor. Na meta, comentou: "Uns 50 quilómetros antes de chegar a Paris, tive um almoço de luxo num restaurante que me ajudou imenso em termos anímicos. Mas francamente, estou um pouco cansado".
Louis Rigoulot chegou no segundo posto, com cinco horas e 47 minutos de atraso sobre o vencedor. Koechlin completou o pódio, mas fez o percurso em 59 horas e 48 minutos, onze horas depois de Levassoir, e um minuto à frente de Auguste Doriot. O último classificado, o autocarro Bollée a vapor, chegou às seis da manhã do dia a seguir, noventa horas depois de ter partido.
Contudo, se Levassoir teve o triunfo da multidão, não levou o primeiro prémio para casa: os regulamentos só davam o primeiro prémio a carros de quatro lugares, e o dele tinha apenas dois. Assim sendo, levou o segundo prémio para casa, de 31.500 francos. O primeiro prémio, de 31.500 francos, ficou com o terceiro classificado, por cumprir o critério dos quatro lugares no seu Peugeot.
Entre os desistentes, estavam - para além do Conde De Dion - o conde De Chasseloup Laubat, devido a um rolamento quebrado, Léon Serpollet, devido a um eixo quebrado, e André Michelin, devido aos demasiados furos que teve ao longo do caminho. Acabou por chegar fora do tempo regulado.
Contudo, uma coisa é certa: a corrida teve um sucesso esmagador, e houve logo o interesse de fazer outras corridas semelhantes, quer em França, quer no resto do mundo. Com o esmagador sucesso da corrida, e a crescente popularidade do automóvel, todos chegaram à conclusão que era altura de se organizarem. A 12 de novembro de 1895, em cada do Conde De Dion, era constituído o Automobile Club de France (ACF).
A PRIMEIRA VEZ NA AMÉRICA
Contudo, o ACF não era a primeira associação automobilistica do mundo. Perdeu por apenas doze dias, pois no dia 1 de novembro, nos Estados Unidos, Leslie King tinha fundado a American Motor League, o embrião das atuais associações do automóvel e do automobilismo americanos. E no outro lado do Atlântico, eles tinham sido contagiados pela febre do automobilismo, e faltavam poucos dias para que acontecesse a primeira competição em solo americano. Tentava-se aplicar a mesma receita francesa de sucesso nos Estados Unidos. Um milionário, H.H. Kohlsaat, pediu ao jornal Chicago Times-Herald para que organizasse uma corrida de automóveis marcada para o dia 2 de novembro. Dos cem inscritos inicialmente, contudo, apareceram apenas dois: uma carruagem a vapor feito pelos irmãos Duryea e um Mueller-Benz dirigido pelo filho do autor do projeto, Oscar Mueller. Com poucos concorrentes, a corrida foi adiada para o dia 30 do mesmo mês.
A corrida em si era um percurso de 156 quilómetros entre Chicago e a localidade de Waukegan, e volta. Contudo, no dia da corrida, a temperatura estava muito baixa, caiu um forte nevão na cidade, que deixou com uma camada de 30 centímetros nas estradas da região, e as rajadas de vento atingiam os 100 quilómetros por hora. Desta vez, apareceram seis concorrentes, um deles um motociclo Sturges, mas as dificuldades apareceram mesmo antes da partida, quando um dos carros, um De la Vergne-Benz, ficou preso na neve e desistiu... no caminho para a partida.
Pouco depois, outro carro, um Macy-Benz conduzido por Jerry O'Connor colidiu com um veículo de tração animal, derrapava numa linha de caminho de ferro e embateu num carro cheio de jornalistas, danificando a direção. Mas O'Connor não desistiu e pouco depois, assumia a corrida. Tinha um avanço de dois minutos sobre Frank Duryea, mas no percurso de volta, a direção cedeu, e Duryea herdou o comando e não o largou até à meta. Quando chegou, já a noite tinha caído em Chicago e a esmagadora maioria dos espectadores tinha recolhido a casa. Resultado final: apenas 50 espectadores acolheram Duryea como vencedor e o viram receber o prémio de dois mil dólares. Oscar Mueller era o segundo classificado, a mais de meia hora do vencedor, mas quem o condizia era o juíz Charles King, pois Muller estava enregelado, devido à demasiada exposição ao frio!
Mas apesar das dificeis condições climatéricas, tudo apontava para o sucesso do automovel e do automobilismo. Uma boa divulgação pela imprensa e o enorme interesse do público fazia com que aparecessem os primeiros heróis desportivos, a melhor publicidade que o automóvel poderia ter para o seu desenvolvimento. E outras corridas, mais longínquas e mais épicas, estavam no horizonte.
(continua no próximo episódio)
Ao todo, inscreveram-se 30 carros, mas no dia da corrida, a 11 de junho, apenas 21 carros estavam presentes. Dezasseis usavam já motor de combustão interna, seis eram movidos a vapor, um era elétrico, e entre eles, ainda se encontravam dois motociclos. Depois de terem feito uma parada do Arco do Triunfo até à Praça de Armas, em Versailles, alinharam à partida, partindo em intervalos regulares.
Rigoulot foi o primeiro líder, mas na zona de Orleans, De Dion assumiu a liderança, com o seu carro a vapor, seguido por outro carro a vapor, de Bollée. Contudo, quem observava tudo à distância era Émile Levassoir, que não os deixava fugir. Contudo, antes de chegarem a Tours, De Dion estava fora de prova e Bollée atrasava-se. Levassoir assumiu a liderança e fazia uma boa média de 26 km/hora, alcançando a localidade de Ruffec (200 km a norte de Bordéus) pelas 3:30 da manhã. Quando chegou lá, encontrou o seu condutor substituto... na cama. Rigoulot e Doriot vinham a seguir, mas tinham já um atraso superior a duas horas.
Levassoir decidiu continuar, e quando chegou a Bordeus, pelas 10:40 da manhã do dia a seguir, simplesmente deu meia volta e encetou o caminho de regresso. Quando foi a vez da dupla perseguidora chegar à cidade, já Levassoir tinha um avanço de... três horas e meia. Vendo que o carro se portava bem, e ele não apresentava sinais evidentes de cansaço, decidiu fazer o percurso totalmente sozinho, o que é um feito notável, mesmo agora.
No final, Levassoir completou o percurso em 48 horas e 48 minutos, e foi recebido na meta, situada na ponte Maillot, por uma multidão em delírio, que felicitava o vencedor. Na meta, comentou: "Uns 50 quilómetros antes de chegar a Paris, tive um almoço de luxo num restaurante que me ajudou imenso em termos anímicos. Mas francamente, estou um pouco cansado".
Louis Rigoulot chegou no segundo posto, com cinco horas e 47 minutos de atraso sobre o vencedor. Koechlin completou o pódio, mas fez o percurso em 59 horas e 48 minutos, onze horas depois de Levassoir, e um minuto à frente de Auguste Doriot. O último classificado, o autocarro Bollée a vapor, chegou às seis da manhã do dia a seguir, noventa horas depois de ter partido.
Contudo, se Levassoir teve o triunfo da multidão, não levou o primeiro prémio para casa: os regulamentos só davam o primeiro prémio a carros de quatro lugares, e o dele tinha apenas dois. Assim sendo, levou o segundo prémio para casa, de 31.500 francos. O primeiro prémio, de 31.500 francos, ficou com o terceiro classificado, por cumprir o critério dos quatro lugares no seu Peugeot.
Entre os desistentes, estavam - para além do Conde De Dion - o conde De Chasseloup Laubat, devido a um rolamento quebrado, Léon Serpollet, devido a um eixo quebrado, e André Michelin, devido aos demasiados furos que teve ao longo do caminho. Acabou por chegar fora do tempo regulado.
Contudo, uma coisa é certa: a corrida teve um sucesso esmagador, e houve logo o interesse de fazer outras corridas semelhantes, quer em França, quer no resto do mundo. Com o esmagador sucesso da corrida, e a crescente popularidade do automóvel, todos chegaram à conclusão que era altura de se organizarem. A 12 de novembro de 1895, em cada do Conde De Dion, era constituído o Automobile Club de France (ACF).
A PRIMEIRA VEZ NA AMÉRICA
Contudo, o ACF não era a primeira associação automobilistica do mundo. Perdeu por apenas doze dias, pois no dia 1 de novembro, nos Estados Unidos, Leslie King tinha fundado a American Motor League, o embrião das atuais associações do automóvel e do automobilismo americanos. E no outro lado do Atlântico, eles tinham sido contagiados pela febre do automobilismo, e faltavam poucos dias para que acontecesse a primeira competição em solo americano. Tentava-se aplicar a mesma receita francesa de sucesso nos Estados Unidos. Um milionário, H.H. Kohlsaat, pediu ao jornal Chicago Times-Herald para que organizasse uma corrida de automóveis marcada para o dia 2 de novembro. Dos cem inscritos inicialmente, contudo, apareceram apenas dois: uma carruagem a vapor feito pelos irmãos Duryea e um Mueller-Benz dirigido pelo filho do autor do projeto, Oscar Mueller. Com poucos concorrentes, a corrida foi adiada para o dia 30 do mesmo mês.
A corrida em si era um percurso de 156 quilómetros entre Chicago e a localidade de Waukegan, e volta. Contudo, no dia da corrida, a temperatura estava muito baixa, caiu um forte nevão na cidade, que deixou com uma camada de 30 centímetros nas estradas da região, e as rajadas de vento atingiam os 100 quilómetros por hora. Desta vez, apareceram seis concorrentes, um deles um motociclo Sturges, mas as dificuldades apareceram mesmo antes da partida, quando um dos carros, um De la Vergne-Benz, ficou preso na neve e desistiu... no caminho para a partida.
Pouco depois, outro carro, um Macy-Benz conduzido por Jerry O'Connor colidiu com um veículo de tração animal, derrapava numa linha de caminho de ferro e embateu num carro cheio de jornalistas, danificando a direção. Mas O'Connor não desistiu e pouco depois, assumia a corrida. Tinha um avanço de dois minutos sobre Frank Duryea, mas no percurso de volta, a direção cedeu, e Duryea herdou o comando e não o largou até à meta. Quando chegou, já a noite tinha caído em Chicago e a esmagadora maioria dos espectadores tinha recolhido a casa. Resultado final: apenas 50 espectadores acolheram Duryea como vencedor e o viram receber o prémio de dois mil dólares. Oscar Mueller era o segundo classificado, a mais de meia hora do vencedor, mas quem o condizia era o juíz Charles King, pois Muller estava enregelado, devido à demasiada exposição ao frio!
Mas apesar das dificeis condições climatéricas, tudo apontava para o sucesso do automovel e do automobilismo. Uma boa divulgação pela imprensa e o enorme interesse do público fazia com que aparecessem os primeiros heróis desportivos, a melhor publicidade que o automóvel poderia ter para o seu desenvolvimento. E outras corridas, mais longínquas e mais épicas, estavam no horizonte.
(continua no próximo episódio)
2 comentários:
Incrível esta série de matérias sobre os primórdios do automobilismo. Eventos como o grande prêmio da frança de 1906,Vanderbilt cup e as 500 milhas de Indianápolis revolucionaram o automobilismo, e deram a base para o espetáculo que vemos hoje! Espero com muita ansiedade as próximas matérias! Parabéns pelos excelentes artigos Paulo!
Obrigado. Vou andar nisto ao longo desta primavera, e acho que vão todos gostar. É para mostrar às pessoas que o desporto que gostamos não nasceu "ontem".
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