segunda-feira, 1 de março de 2021

A imagem do dia




A historia dos ralis está cheia de grandes duelos entre pilotos míticos, desde tempos longínquos até às provas mais recentes. Mas os antigos dirão que tinham mais piada porque não havia tantas maneiras de ouvir ou ver os carros a passar. Até podem ter um fundo de verdade...

Hoje, recue-se quase 43 anos, para o Rali de Portugal de 1978. Nesse ano, com os carros do Grupo 4, havia muitas marcas que tinham excelentes carros capazes de vencer provas, nestes ralis que eram autênticas provas maratona, que duravam quase uma semana e dezenas de classificativas. Os espectadores iam para a estrada aos milhares, querendo passar gente cujos nomes liam e ouviam, desde Markku Alen a Tony Pond, passando por Walter Rohrl, Hannu Mikkola, Ari Vatanen, Guy Frequein, Jean-Luc Therier, Sandro Munari... e claro, máquinas como o Fiat 131 Abarth, Ford Escort RS 1800, Opel Manta, Porsche 911...

E nesse ano, os organizadores decidiram que o rali teria de acabar com uma especial noturna na Serra de Sintra - já acontecia desde 1976, com sucesso - e normalmente, dezenas de milhares de pessoas iam ver os carros a passar, torcendo pelos seus piloto favoritos. Já agora, nesse ano, o rali tinha 45 classificativas, no total de 631,5 quilómetros percorridos ao cronómetro. Hoje em dia, seriam dois ralis do WRC juntos... e claro, era uma autêntica Volta a Portugal, porque tinha espceiais nas zonas de Fafe, Arganil, Senhora da Graça e claro, Sintra. E quem resistisse a tudo isso quando chegasse a Sintra, tinha toda a chance de uma boa classificação.

Foi o que aconteceu a dois finlandeses, Hannu Mikkola e Markku Alen. O primeiro, no seu Ford, o segundo, no Fiat 131 Abarth oficial. E ainda por cima, Alen já tinha a fama do "maximum attack"...

Mas o mais espantoso é que ambos estavam em duelo desde o inicio, e quando chegaram à fase final, ninguém tinha piscado, hesitado ou errado. Onze segundos os separavam, a favor de Alen, enquanto Jean-Pierre Nicolas, o terceiro... já tinha dez minutos de atraso. Faltavam doze especiais, quatro passagens pela Lagoa Azul, para decidir quem seria o vencedor, que seria consagrado no Estoril. E os espectadores já se preparavam para essa noite, levando a comida para um piquenique noturno, ao frio, que combateriam com fogueiras na serra. O cenário estava montado. Só esperavam que os pilotos fizessem a sua parte.

E se fizeram! Na primeira passagem, um segundo separavam os dois finlandeses, a favor de Mikkola, mas Alen volta a ganhar quatro segundos na primeira passagem por Penina, aumentado para 14 segundos. Mas na primeira passagem por Sintra, alguns espectadores armados em idiotas colocam areia no asfalto, fazendo com que Alen perdesse dez segundos, reduzindo o duelo para quatro. Mas não querem saber: a multidão delirava com o duelo de finlandeses voadores.

Na segunda passagem pela Lagoa Azul, Mikkola tira dois segundos e reduz para dois, mas Alen reage na Penina... ganhando um segundo. E na especial de Sintra, ele parte para o ataque, conseguindo ganhar uns incriveis... nove segundos. Passava da meia noite, e apesar da noite não estar muito fria, Alen saia do carro a escorrer suor da cara, de tão tenso que estava. Alen não sai bem na terceira passagem por Sintra, perdendo um segundo e a ver Mikkola aproximar-se. 

A derradeira passagem pelas especiais estava marcada para depois das quatro da manhã. Mas ninguém dormia. Os espectadores, agarrados ao rádio, comendo e bebendo, comentando e apostando quem venceria. Os pilotos, aguardando que os carros estivessem prontos para a segunda parte, a decisiva, para saber quem iria sair dali como vencedor do Rali de Portugal. Alguns dos jornalistas que percorriam as classificativas a pé, batiam as portas das casas de particulares para usar os seus telefones, porque... estamos em 1978 e a Internet ainda era coisa de ficção cientifica.

O "showdown" final começou pelas 03:57, com Mikkola a fazer 2.22 e Alen 2.24, reduzindo a diferença para... um segundo! E às 04:10, o piloto da Ford conduz no limite, fazendo 3.57 contra 4.02 de Alen, passando o comando para o seu compatriota. No final das especiais, os dois pilotos estavam concentradíssimos, sem serem incomodados pelos jornalistas, protegidos pelas seus equipas. Parecia um duelo entre Muhammad Ali e George Frazer, só que em máquinas de 250 cavalos cada uma.

Tudo ou nada. Dez quilómetros e meio para decidir o vencedor. E ao contrário do velho Oeste, este duelo era quase a nascer o sol. E Daniele Audetto, o chefe da Fiat naquele ano - depois de, dois anos antes, ter andado a monitorizar Niki Lauda na Formula 1 - disse a Markku Alen a frase: "maximum attack." Tudo ou nada. Afinal de contas, era a vitória no rali que estava em jogo. 

Na passagem por Sintra... é o que Alen faz. Pulveriza o recorde, fazendo 7.01, e no final, perguntava ao seu navegador quanto faltava. Precisavam que não passasse nos 2.15 minutos seguintes para ganhar a prova. Quando esse tempo passou, eles comemoravam efusivamente. Mas não sabiam porquê. Depois souberam a razão: Mikkola sofrera um toque e danificara a roda, sofrendo um furo. Não era um final anti-climático, mas era um duelo onde quem piscasse, errasse ou hesitasse... perderia. 

Para Alen, era a sua segunda vitória em Portugal. Mikkola teria de esperar mais um ano até inscrever o seu nome na lista de vencedores, algo que faria mais duas vezes. E quando chegaram ao Autódromo do Estoril para receber a coroa de louros e o champanhe, Alen abraçou o seu compatriota porque não era um duelo mortal. Eram compatriotas e amigos que se respeitavam na estrada, porque eles tinham um pé pesado, e se um vencia, o outro também poderia vencer no rali seguinte. 

E na semana em que se recorda Hannu Mikkola, morto aos 78 anos com um cancro, a evocação do duelo na serra de Sintra em 1978 é uma boa maneira de recordar um dos melhores pilotos de uma geração memorável.   

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