Toda a gente sabe que pediu empréstimos para financiar a sua carreira na Formula 1 - as 35 mil libras que injetou na March em 1972 salvaram a equipa da falência, por exemplo - e toda a gente sabe dos eventos do dia 1º de agosto de 1976, quando na segunda volta do GP da Alemanha, no Nurburgring Nordschleife, se despistou e destruiu o seu Ferrari, ficando com cicatrizes profundas na sua cara e uma orelha parcialmente amputada. E quarenta dias depois, regressou ao seu carro, em Monza, quase como um Lázaro ressuscitando dos mortos. E em outubro, em Fuji, quando voluntariamente encostou o seu carro e abdicou do título mundial porque não queria encarar a chuva forte que caía naquela pista.
E claro, o resto da carreira: quando foi para a Brabham, em 1978, ganhando um milhão de dólares por temporada e no final de 1979, aos 30 anos, abandonou a Formula 1 para se concentrar na sua nova paixão: a aviação. E dois anos depois, Ron Dennis o convenceu a voltar a correr, desta vez pela McLaren, venceu uma corrida no seu terceiro Grande Prémio após o seu regresso e conquistou um terceiro titulo mundial, em 1984, apenas porque sabia andar bem em corrida - nem conseguiu qualquer pole-position nessa temporada! E no final de 1985, aos 36 anos, largou a Formula 1 de vez, e foi concentrar-se na sua Lauda Air.
Em 1991, a companhia aérea especializava-se em voos para o Extremo Oriente, Sudeste Asiático e Austrália, a partir de Viena, em modernos Boeings 767. Hong Kong, Tóquio, Melbourne e Sidney não eram explorados pela Austrian Airlines, e a Lauda Air preenchia essa vaga. Mas na noite de 25 para 26 de maio de 1991, um Boeing 767, o Voo 004 da Lauda Air, fazia um voo de Hong Kong para Viena quando desapareceu inexplicavelmente dos radares. No dia seguinte, os restos calcinados do avião foram encontrados numa zona remota do norte da Tailândia, juntamente com os restos mortais dos seus 223 passageiros, entre eles quatro macaenses.
A imagem de Lauda no local do acidente, entre os restos do seu avião, deve ser algo que nunca vi na vida. Alguém imagina o presidente da British Airways, ou da American Airlines, no local do acidente, querendo saber o que tinha acontecido? Eu, que conheço alguma coisa - mas não muita - da industria da aviação, sei que é muito raro ver o presidente no local de um desastre, querendo saber o que tinha passado. E aqui, mais uma vez, entrou o homem combativo, que enganou a morte e sempre fez as coisas nos seus termos, o "Computador Humano", que nunca teve problemas em dizer que os seus carros eram uma bosta, até os afinar rumo à perfeição.
Foi descoberto que a causa do acidente tinha sido o acionamento em voo do cruzeiro do “Thrust Reverser” de um dos motores. Este sistema, usado para abrandar o avião na aterragem, entrara em funcionamento de forma involuntária, ou seja, sem comando dos pilotos para tal, o que causou severos problemas de controlo, que culminaram na desintegração da aeronave ainda em voo. O impacto no solo foi tal que o Gravador de Dados do Voo (FDR, sigla em inglês), estava destruída, apenas o Gravador de Voz (CVR, sigla em inglês) poderia ser usada.
Mas havia algo que não batia certo: em simulação, esse tipo de incidente era recuperável. De facto o avião havia sido certificado para “sobreviver” a um “uncommanded thrust reverse”. Mas Lauda, que sabia pilotar um 767, tinha estado dentro de simuladores e ficou convencido que havia algo mais nisso e visitou a sede da Boeing, em Seattle, para esclarecer as suas dúvidas. Queria uma declaração da fábrica a avisar dessa possível falha, mas a fabricante de aviões disse que demoraria três meses para fazer tal coisa, devido a... maneira como teria de expressar tais duvidas. Palavreado jurídico para evitar processos futuros, digamos assim.
Com o tempo, provou-se que... sim, havia o perigo dos reversores poderem ser ativados a 30 mil pés e a 400 nós de velocidade, como acontecera com o seu avião, devido a um problema eletrónico no sistema que ativava esses reversores. No final, em fevereiro de 1992, a Boeing reconheceu que havia um problema e o resolveu. Lauda sentiu-se justiçado: "Esta foi a primeira vez em oito meses que ficou claro que o fabricante [Boeing] era o culpado, e não o operador do avião [ou Pratt e Whitney, fabricante de motores].", disse na altura.
Anos mais tarde, quando recebeu o Laureus para a sua carreira, dedicou-o aos derrotados, afirmando que é nos momentos mais baixos é que se aprende melhor do que nas vitórias. Tenho a certeza que deve ter pensado em dois momentos: daquela tarde de agosto na Alemanha e aquele dia abafado de maio na Tailândia, com quase quinze anos de diferença.
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