Neste meu pais à beira-mar plantado, temos um pésimo hábito de tratar com deferência qualquer pessoa que tenha um grau académico, seja ele doutor, engenheiro, arquitecto... confesso o meu incómodo quando me chamam de "jornalista". Simplesmente não gosto e não gosto também da deferência que se trata qualquer pessoa com grau académico. Pior, passo-me quando vejo, nas universidades, os professores a fazerem alarido quando outras pessoas não os tratam por "professor doutor", querendo mostrar que tem um grau superior a tudo. Só se for na naftalina...
Para mim, doutor é um licenciado em medicina e ponto final.
Em junho de 1982, ainda vivia no Brasil, mas não por muito mais tempo. Em Espanha começava o Mundial, ou a Copa do Mundo, como se chama por aí. Observava, entre o curioso e o espantado, o Carnaval que havia nas ruas, enfeitadas com tantas bandeirinhas do Brasil. Até no jardim de infância onde andava, em frente à casa onde vivia, em Vila Velha, a professora nos encarregou de dar bandeirinhas do Brasil para levar para casa. Nos dias a seguir, descubro a razão de toda uma agitação: era a seleção nacional que jogava. Nesses dias de junho, descobri porque é que as pessoas se juntavam á volta da televisão, a razão porque os desenhos animados não passavam ás horas do costume, porque é que de repente, muita gente - até bebés - andavam com uma estranha camisola amarela e porque é que, quando alguém que vestia essa camisola amarela chutava para uma rede, pulavam todos de alegria. E quando era o contrário, ora ficavam silenciosos, ora insultavam as mães dos jogadores que tinham marcado os golos.
E passados os dias aprendi certos nomes: Toninho Cerezo, Falcão, Batista, Luisinho (porque é esse o nome do meu irmão) e principalmente um Zico, que marcava golos, muitas das vezes a passe de um Socrates. Foi graças a ele que entendi o que era o futebol, e para quê é que servia jogadores como ele. Servia para entregar a bola a alguém que se encarregava de chutar para dentro de uma rede, a tal rede que aos poucos descobria para quê é que servia.
De repente, um dia, deixei de ouvir a alegria e deixei de ver as pessoas à frente da TV. Depois o meu avô explicou que tinha sido porque uns senhores de azul tinham estragado a festa dos meninos que jogavam de amarelo. E depois o meu pai, que trabalhava na Companhia do Vale do Rio Doce, me tinha falado que uns engraçadinhos tinham colocado uma bandeira diferente, em jeito de provocação. Anos depois, vim a saber da história toda.
Quatro anos depois, tinha atravessado o Atlântico para viver uma nova fase da minha vida, e novo Mundial tinha aparecido. Mas apesar de todas essas mudanças, lá estava ele, mais velho e mais experiente, no México. Nem todos tinham voltado, mas torcia abertamente por eles, num mundial onde queriam voltar a deslumbrar. Depois, num sábado, chegou os quartos de final contra a França. Uma França que, mal sabia eu do alto dos meus quase dez anos, iria ser o carrasco da equipa do pais onde tinha emigrado. Tinha Platini, Giresse, Tigana e um rapaz chamado Jean-Pierre Papin, outro terror das balizas.
Socrates deve ter sido provavelmente o primeiro jogador do qual aprendi o que era o futebol, como se jogava futebol e para quê é que servia o futebol. É ludopédio, é verdade. É muito mais do que uma questão de vida ou de morte, como disse outra lenda do futebol, de seu nome Bill Shankly, treinador de outra equipa que aprendi a admirar, o Liverpool. Este Sócrates - não o outro - mostrou-me pela primeira vez na vida a razão pelo qual nós, simples mortais, devemos gostar de ver futebol. Muito antes dos Maradonas, Zicos, Eusébios, Platinis, e agora, Cristianos Ronaldos e Messis.
Mostrou-me que o futebol é muito mais do que talento nas pernas como sustento para matar a fome e mudar a vida de familias inteiras, como acontece no Brasil e no resto do mundo. Mostrou-me que podemos gostar do jogo e podemos ir muito para além do jogo, mesmo que depois tenhamos de escolher uma equipa e vivamos as amarguras das derrotas e as alegrias das vitórias. Só voltei a sentir algo parecido anos depois, com um senhor chamado Rui Costa, em termos futebolisticos, porque em termos de cidadania, não me recordo de nada parecido com o que Sócrates fez até aos dias de hoje. Nem mesmo em termos de grau académico.
E mostrou também, com o seu exemplo de vida - apesar de nem sempre concordar com as suas opções politicas - que se pode abater um pouco, todos os dias, as desigualdades que ainda grassam nesse enorme país, do tamanho de um continente. Ainda falta muito caminho, mas muito se desbravou e deu o seu contributo para acabar um dos maiores engulhos que o país viveu, a Ditadura Militar que surgiu do golpe de 31 de março de 1964, com a história da Democracia Corinthiana, onde a frase chave é "Ser campeão é um detalhe". Já agora, isso deu origem num documentário, que se estreará no próximo dia 9.
Irónicamente, Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira desaparece da nossa existência terrena para entrar nos arquivos da História no mesmo dia em que se decidiu o Brasileirão. Sócrates jogou anos a fio no Corinthians, o favorito para o título nacional, que precisava de um ponto para ganhar o campeonato contra o segundo classificado, Vasco da Gama. No final do dia, a equipa de São Paulo conseguiu o seu título, o quinto da carreira, e certamente, onde quer que esteja, deve também estar a celebrar esse título. Mas também, creio que já sabia de tudo isso: do título, daquilo que fez e do seu lugar na história. Ars lunga, vita brevis, Doutor Socrates.
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