sexta-feira, 9 de abril de 2010

Grand Prix (Primeira entrada)

- Que raio de ano, hein? – perguntou.

A frase saiu assim, espontânea. Perscrutando o vale que tinha à sua frente, com os picos gelados, e sentindo o vento frio na cara, naquele dia cinzento de quase Inverno, Alexandre cobria-se até ao topo com a gola do seu casaco, tentando defender-se do vento cortante que batia na sua cara. Ao seu lado, o homem que em teoria era o seu patrão, mas que a realidade o tinha transformado num amigo, entendia o sentimento que ia na sua alma. Aliás, todos aqueles que tinham vivido aquele ano certamente tinham sentimentos semelhantes aos dele, que tinha conseguido sintetizar numa simples frase, dita como se fosse um desabafo.

- É, foi um ano no mínimo louco, a todos os sentidos – retorquiu Pete. Ganhamos, perdemos, e no final, demos um título a um morto – concluiu.

Um ligeiro sorriso apareceu na boca de Alexandre. Provavelmente o primeiro em algum tempo, mas esse sorriso transformou-se em algo mais aberto. Aproximou-se de Pete e disse:

- Então, vou ser o teu piloto na temporada de 1971?
- Claro que sim. Que tens em mente?
- Quero ser campeão do mundo, ora.
- Mas és muito jovem. Só tens uma temporada completa.
- Eu faço 25 anos em Julho, e então? Só tens de confiar em mim. Aliás, é a altura ideal de ganhar.
- O Fângio ganhou com 46 anos. Para quê tanta pressa?
- Não me vejo a correr… ora vejamos… em 1992? Acho que seria demasiado sonhador ou demasiado velho, e vamos ser honestos: a sorte não me vai proteger para sempre. Prefiro que seja agora do que nunca. Então, quem é que tu vais buscar?
- O “herdeiro”.
- Teddy? Ah… eu sabia que ias gostar dele.
- Deu conta do recado nas paragens americanas.
- E num carro desactualizado…
- … mas continua a ser bom. Temos sorte por ter um bom projectista, não é Alex?
- Eu não desenhei o carro. Limito-me a afiná-lo.
- Claro, claro… onde tinha eu a cabeça? Tu és só o piloto, respondeu Pete, sorrindo e abanando a cabeça de incredulidade.

Depois ficaram em silêncio. Ambos voltaram a olhar para o vale que estava defronte deles, indiferentes ao frio cortante e de um tempo que ameaçava neve. Os sorrisos desapareceram e entraram em reflexão por tudo que tinham passado durante aqueles meses. Pete disse pouco depois:

- Anda, vamos embora. Acho que vai chover e os meus ossos martirizados já não são o que eram.
- Ou nevar, respondeu Alex.

Ambos caminharam para o Porsche 911 azul marinho que estava atrás deles. Entraram, com Pete no lado do condutor e Alex no do passageiro. Este pega no cinto para depois dizer:

- Sabes, Pete, daqui a dez anos farei 34.
- E então?
- Daqui a dez anos estarei morto. É por isso que tenho de ganhar tudo até lá. Estás a olhar para um homem que está a correr contra o tempo, Pete.


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Peter Aaron coloca os óculos escuros para se proteger do sol inclemente de Junho. Sai do carro e olha para a multidão que está diante da Catedral e não quer acreditar no que vê. Debaixo de mais de 30 graus, milhares de pessoas estavam aglomeradas, cotovelo contra cotovelo, para assistir à uma missa de corpo presente. Para ele e para o grupo, nunca tinha visto algo assim nas suas vidas, e tinham ido a muitos funerais de colegas mortos. Sabia que ia ser assim, mas desconhecia o seu alcance. Subiu as escadas olhando para a multidão, e á medida que chegava ao seu topo, reparava que a enorme praça que se mostrava perante os seus olhos tinha pessoas a perder de vista. E pelo que tinham contado por mais do que uma pessoa, deviam estar naquel local cerca de meio milhão de pessoas.

Chegado ao topo da escadaria, entrou dentro do templo. Estava cheio que nem um ovo, de pessoas conhecidas e não tão conhecidas. Todo o pelotão do automobilismo estava lá, e o caixão de Alexandre Moreira estava guardado pela Guarda de Honra dos Cadetes da Academia Militar do Real Exército Sildavo. Sabia-se que a qualquer momento estaria para chegar a Família Real, com Sua Alteza Real, Dom Miguel I à cabeça, e que corria o forte rumor que lhe iria conceder a título póstumo a Ordem de Cavaleiro do Pelicano Negro, a mais alta condecoração do país, somente dado a outros chefes de Estado e ao herdeiro da Coroa, o Duque de Monforte.

Avançou, lenta e hesitantemente em direcção ao féretro do seu amigo. Apesar de ter visto dezenas de caixões, de amigos e concorrentes seus, à medida que se aproximava, não conseguia resistir às lágrimas, mas tentava disfarçar com os óculos escuros, que não tinha tirado desde que tinha entrado na Catedral. O seu único consolo no meio disto tudo foi que ao menos, não tinha acontecido ao volante de um dos seus carros. Mas achava irónico o facto de ele ter morrido, não numa corrida, mas numa simples sessão de testes, algo que ele não era suposto estar lá, mas o seu carácter, sempre voluntarioso, sempre disposto a ajudar a melhorar a máquina que tinha em mãos, o fez estar naquela banal, mas fatídica sessão de testes, no circuito de Paul Ricard.

Chegou ao pé do caixão. Tirou os óculos escuros. Meteu a sua mão direita em cima do seu capacete e as suas lágrimas começaram a correr. Estamos a 24 de Junho de 1980 e desde há quatro dias a esta parte que a Sildávia está em estado de choque pela morte de bi-campeão do Mundo de Formula 1, com 19 vitórias no total, duas das quais nas ruas do Mónaco, duplo vencedor das 24 horas de Le Mans e das 12 Horas de Sebring, vencedor na Targa Florio e dos 1000 km de Spa-Francochamps, Silverstone, Monza, Nurburgring… entre outros feitos de menor importância, numa carreira com mais de 15 anos. Podia ser um rico palmarés, mas no seu país, ele era um herói nacional.

Pete estava sentado no banco da catedral, na fila da frente, entre duas mulheres. Pamela, a sua, e Cláudia, a viúva de Alexandre. Ambos olham para Pete, que ainda estava em transe pela velocidade e quantidade de pensamentos que lhe passavam pela cabeça naquele momento. Parecia fitar o caixão, mas não. Apenas olhava o vazio, que por coincidência estava em linha directa com o caixão fechado, coberto pela bandeira sildava, verde amarela e vermelha, colocada de forma igual que a bandeira francesa, com o escudo da casa real de Orleães e Bragança, e com o seu capacete por cima. Após um instante de silêncio, disse:

- Agora vem tudo à minha cabeça.
- O quê, afirmou a sua mulher.
- Tudo que falei com ele, tudo. E como comecei esta aventura.
- Que dizes?
- Ele disse-me, mas não acreditei muito.
- Como assim?
- Ele disse-me quando é que ia morrer. Pensava que era um delírio…
- Também sabia, disse Cláudia, colocando a sua mão na de Pete.

Pete virou a cabeça:

- E não o impedimos porquê?
- Nunca o conseguiríamos. E eu sabia disso tudo. Pensei até ao último minuto que era mentira, mas…
- Mas o quê?
- Era real. Sabia de tudo isto há anos, e podia ter ido embora, pura e simplesmente. Mas fiquei porque simplesmente o amava demasiado, afirmou, quase sem contar as lágrimas.
- O quê?
- O Alex e eu sabíamos que ele não iria viver muito tempo. Ele sabia quando ia morrer.

Pete voltou a olhar para o caixão. A sua mente, totalmente confusa desde há quatro dias a esta parte, colocou finalmente alguma ordem quando viu por fim o fétetro, de tampa fechada, para não vissem as lesões causadas pelo impacto. Caindo em si, disse num murmúrio quase imperceptível:

- Então, sempre era verdade. Agora entendo todas as nossas estranhas conversas quando morria um dos nossos, o Antti, o Teddy… e especialmente aquela frase: “
Sei quando e como…
- … vou morrer. A única coisa que peço à Morte é que me deixe conquistar aquilo que desejo e seja feliz ao lado de alguém”, completou Cláudia.

Ela deu a mão a Pete, olhou para ele e esboçando um sorriso no meio das lágrimas que não paravam de cair, disse:

- Pois é, Pete. Ajudamos a concretizar o sonho de um moribundo. Foi por isso que fiquei com ele. E quero acreditar que tudo o que aconteceu tenha sido instantâneo. Ele odiava a dor.
- Não suportava um beliscão… completou, sorrindo, enquanto caiam as lágrimas.


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Nova Iorque, Outubro de 1968.

Pete Aaron está na cama do hospital, ainda sedado pela anestesia que tinha levado após a operação que levou para reduzir as fracturas na perna direita que havia sofrido em três sítios, depois de ter sido projectado do seu Yomura de Formula 1, num acidente que muitos tinham classificado de horrível como de miraculoso, pois ao verem o herói americano no chão, muitos temiam o pior. E num ano em que já tinham visto de tudo, desde assassinatos presidenciais até a motins em cidades, ver outro herói morto, ainda por cima em directo numa das cadeias nacionais, poderia ter sido demais. O seu acidente fora visto em directo pela televisão e abrira os telejornais de Domingo e dos dias seguintes, graças a correspondentes locais, com apresentadores como Chet Huntley, David Brinkley ou Walter Cronkite a falarem sobre o acidente em si e sobre os detalhes da complicada operação que tinha sido submetido na perna direita, para reduzir as fraturas que sofrera, evitando uma possivel amputação.

No seu lado direito estava um ramo de flores com o devido cartão de melhoras, e uma bela mulher loira estava sentado à beira da cama. Pamela, a sua mulher, esboçava um sorriso ao ver que o seu marido estava a acordar da operação. Quando a viu, exclamou.

- Querida?
- Sim, Pete?
- Hoje é um belo dia, não é?
- É querido, é sim – declarou, passando a mão pela cara dele.
- Querida?
- Diz.
- Ganhaste. Vou deixar de ser piloto.

Pamela aproximou e disse:

- Pronto, querido. Descansa muito que amanhã vem cá o médico para saber como estás a reagir à operação.
- Querida, é de vez.
- Acredito, Pete. Mas tens de dormir agora. Depois falamos, está bem?

Pete sossegou-se por um momento, e depois disse:

- De quem são essas flores?
- É da parte do sr. Yomura.
- Ahhh… foi muito simpático por parte dele.
- Ele vem cá depois, querido.
- Ainda bem. Depois tenho que falar com ele.
- Acredito, querido, acredito. Agora… shhhh. Dorme, tá bem?
- Sim querida.

(continua na semana que vem)

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