No dia em que se faz 60 anos sobre a primeira vitória da Ferrari, em Silverstone, é engraçado ver o jornal português "i" fazer uma entrevista ao primeiro piloto a vencer oficialmente pela Ferrari. Afinal de contas, é unico entrevistar um dos últimos sobreviventes desse tempo (outros são Stirling Moss ou Robert Manzon). José Froilan Gonzalez, argentino e a caminho dos seus 89 anos, parece ter uma memória de elefante e somente não foi a Silverstone a conselho dos médicos, ele que já tem alguns "bypasses" no seu corpo. Não o chamavam "O Touro das Pampas" por algum motivo, não é?
Enfim, aproveitando a ocasião de que a Copa América estar a ser realizada na Argentina, o jornalista Rui Miguel Tovar decidiu entrevistar Froilan Gonzalez e publicá-la no dia em que Enzo Ferrari disse, 60 anos antes, que "parecia que tinha acabado de matar a minha mãe". E não era alcançado um feito qualquer: tinha terminado com um monopólio. E para Enzo Ferrari, era uma vingança pessoal.
FROILAN GONZALEZ: "ESTAVA MAIS CONTENTE DO QUE O DIABO"
Há 60 anos, a Ferrari ganhou o primeiro GP de Fórmula 1 da sua história, com um argentino ao volante. Ele conta-nos a vitória sobre Fangio.
Copa quê? Copa América? Por favor... Um torneio em que a organização convida duas selecções que nem sequer são sul-americanas (México mais Costa Rica, e era para virem os japoneses, esses americanos de gema), um torneio que parece a cópia horrorosa do Mundial-78 com os jogos da terceira, e decisiva, jornada da fase de grupos em horas e até dias diferentes, um torneio em que oito dos 12 participantes passam à fase seguinte? Por favor... Voltamos depois dos "comerciais"...
E cá estamos de novo a responder em directo de Buenos Aires. Nesta altura, o futebol está a perder terreno para a Fórmula 1. Vrruuuuummmmmmmm. Há precisamente 60 anos, a 14 de Julho de 1951, no GP Silverstone, a Ferrari celebra a primeira vitória de sempre na Fórmula 1 e quebra a hegemonia dos Alfa Romeo. O piloto encarregue desta façanha é argentino, chama-se José Froilán González e ainda é vivo. Tem 88 anos e uma memória de elefante. Neste caso, será melhor de cavalinho. Lembra-se de tudo. Do convite de Enzo Ferrari, do aquecimento, das 90 voltas, da vitória sobre o compatriota Juan Manuel Fangio, da consagração no pódio e da viagem de volta para casa.
"Quando o Mundial da F1 arrancou, eu não fazia parte da equipa da Ferrari, apesar de ter ganho a dois Mercedes numa importante prova argentina. Nessa ocasião, Enzo Ferrari enviou-me um telegrama de felicitações", conta ao telefone, num ritmo acelerado, entusiasmado. Em 1951, a equipa da Ferrari era constituída por Alberto Ascari, o seu mentor, Luigi Villoresi, e o motociclista Dorino Serafini. Mas Serafini tem um acidente e é substituído por Piero Taruffi no GP Bélgica.
O italiano aceita correr em Spa Francorchamps, mas já não o pode fazer em Reims, no GP de França, porque tem um pré-acordo com a Gilera para se dedicar às motos nesse fim-de-semana. Sem Serafini nem Taruffi, o patrão Ferrari recorre ao segundo suplente: José Froilán González. "No meio disto tudo só há uma questão que me atormenta, no bom sentido, claro. Quando me bateram à porta e me comunicaram essa medida, eu acabei de fazer a barba ou saí do quarto sem mais nem menos? Não me lembro. Apanharam-me tão de surpresa..."
No dia seguinte, treinos. "Fiquei em quarto e recebei um telefonema do viejo Ferrari antes de dormir a desejar-me boa sorte. Obviamente, não dormi. Na corrida, os Alfa [Fangio em 1º e Farina em 2º] foram melhores que os Ferrari, como era habitual. Acabei em sexto e o Ferrari apostou em mim para o GP seguinte. E até assinei contrato e tudo: 150 mil liras por mês mais prémios."
É SÓ ACELERAR
De Modena para Silverstone, a Ferrari envia três carros. Dois são modelos 1951, o outro é de 1950. Por estatuto, nacionalidade e experiência na F1, os italianos Ascari e Villoresi ficam com a versão moderna, enquanto o argentino conduz o outro. "Lógico", rebate Froilán com o estilo cavalheiresco que o caracteriza. Nos treinos, Ascari e Villoresi aceleram, aceleram mas não conseguem melhor que 1m46s, ao passo que Froilán atinge o 1m44s. Pela primeira vez em Silverstone, alguém dá uma volta a mais de 100 milhas por hora. Exactamente 100,597 mph (161,861 km/h). Ganha um segundo a Fangio, dois a Ascari e 2''4'' a Villoresi. "O meu carro acelerava mais." Simples, não é?
Sábado, 14 de Julho de 1951. Vinte carros alinham na grelha de partida. "O homem que deu a partida tinha os dedos grossos. Pareciam martelos. Eu olhava para o Fangio, ele para mim. Quando a bandeira se agitou, patinámos e patinámos. O [Felice] Bonetto [que partiu na segunda fila] aproveitou essa descoordenação e ultrapassou-nos. Na primeira curva era ele o líder. Eu fui atrás dele."
Fangio, esse, estava em quinto, atrás de Farina e Ascari. "Na segunda volta, consegui ultrapassar o Bonetto e o Fangio já estava em terceiro. Na quarta volta, o Fangio passou para segundo e estava colado a mim. Eu olhava para trás e não o via, sabes porquê? Ele andava a fintar-me, de um lado para o outro, a tentar baralhar-me. Se eu olhasse para a esquerda, ele metia para a direita e eu perdia o ângulo de visão e assim sucessivamente. Foi assim por voltas e mais voltas. À 37ª, demos uma volta de avanço a todos os participantes. O nosso ritmo era frenético e começava então o jogo das boxes. Eu estava à espera que o Fangio fosse primeiro." Uma pesquisa na revista "El Gráfico" desse GP informa que o Alfa Romeo do argentino partira com o tanque de 250 litros de gasolina cheio mas o Ferrari de Froilán consumia menos. E é aí que o motor de Fangio pára, arranca, pára, arranca e perde 72 segundos.
É SÓ GERIR A VANTAGEM
"Esse percalço dá-me outro ânimo, outra confiança. Vou às boxes e enchem-me o depósito com mais 20 litros. Os pneus mantêm-se. A paragem demora só 23 segundos. Quando volto à corrida, continuo bem à frente, quase um minuto de avanço sobre o Fangio. Até ao final foi só saber gerir o tempo e o carro. Acabei à frente de Fangio." Com 51 segundos e duas voltas de avanço a Villoresi, o terceiro classificado. Pela primeira vez, um Ferrari ganhava um GP. Começa aqui a lenda da marca italiana, já com 216 vitórias, a última das quais no domingo, com o espanhol Fernando Alonso ao volante. Onde? Em Silverstone!
"A diferença é que o Alonso voltou de avião, com certeza, e eu de carro, um Alfa 1900, guiado pelo Juan [Fangio]. Além de nós, a minha mulher. Fomos até Milão. Lá, onde vivíamos, agarrei no Fiat Millecento e desci até Modena para saudar o viejo Ferrari. Ele estava animado, diz que chorou de alegria, e enviou um telegrama de ''condolências'' a Orazio Satta-Puglia, director desportivo da Alfa Romeo." E o Froilán, como se sentia? "Mais contente que o Diabo."
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