segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

O preço para ter a Formula 1


Todos conhecem a musica dos Tears for Fears, "Eberybody Wants to Rule the World", de 1985. É verdade que temos esses sonhos, e há maneiras de o conseguir. Uma é pela guerra, outra é pelo ouro. "Plata o Plomo", como diria o Pablo Escobar.

Mas nestes tempos que correm, não há Napoleões ou Escobares. Há a Arábia Saudita e um senhor que um dia será rei e lá ficará por meio século, pelo menos. E Mohamed bin Salman quer comprar tudo. Um exemplo? Aparentemente, foi ele que propôs comprar a Formula 1 por 20 mil milhões de dólares. E a Liberty Media disse "não, obrigado". 

Para terem uma ideia, esse valor é cinco vezes maior ao valor que compraram a Bernie Ecclestone. Quem conta a história foi a Bloomberg na sexta-feira

A PIF, Public Investiment Fund, fez uma oferta do qual a Liberty teve a coragem de dizer não. E digo isso porque ultimamente, eles andam a comprar imensos investimentos desportivos no sentido de se mostrarem ao mundo. Foi o que aconteceu no ano passado quando compraram o Newcastle, na Premier britânica, e agora este ano, quando deram 500 milhões a Cristiano Ronaldo para se reformar nas areias do deserto, no qual desde 2019 é cruzado pelos jipes do Dakar Rally. E nem falamos da Formula 1, que lá está desde 2021 e terá de ficar por lá, mesmo com misseis a caírem a menos de 10 quilómetros do circuito. 

Num tempo onde os árabes querem largar o dinheiro em tudo que é canto, e onde o presidente da FIA é um árabe - dos Emirados Árabes Unidos, e Mohhamed ben Sulayem é multicampeão árabe de ralis - começamos a entender as suas ambições. Um desporto que nasceu na Europa e teve ramificações nos Estados Unidos e na Ásia, a entrada em cena da península arábica significa que eles pretendem que seja o novo centro do automobilismo mundial. Eles já disseram que querem uma equipa árabe e um piloto árabe na Formula 1 num futuro relativamente próximo. De uma certa maneira, até que existe - metade da McLaren pertence ao fundo estatal barenita, por exemplo - mas as ambições são de fazer parte deste mundo, não só como o tio rico que anda a distribuir maços de notas, como quer sujar as mãos na graxa e ganhar corridas e campeonatos. 

Só que há um problema. Ético. (isso existe, caso saibam. E é importante, porque somos humanos.) Chama-se "sportwashing". E com um país que tem um péssimo registo em termos de democracia, liberdade de imprensa e direitos humanos, "comprar" tudo que mexa e é importante para "limpar" a sua imagem para o mundo é uma maneira de dizer que todas as nossas convicções são hipócritas e basta agitar um maço de notas para ficarmos todos felizes e olhar para o outro lado. E depois não admira que digam que "as democracias são decadentes", ou então: "se cortarmos o petróleo, eles piarão mais fino". Como podem entender, em 50 anos, o mundo andou mais um bocadinho e a tecnologia também.

Podem olhar para a Rússia neste momento. Também disse a mesma coisa e agora sofre por ter pisado o risco em termos militares. Mas mesmo assim, há quem diga que eles estão em guerra com o Iémen, e foi de lá que surgiu o míssil que atingiu aquela refinaria em Jeddah no fim de semana de Grande Prémio. Verdade, ainda tem o seu quê de hipócrita, só que a guerra é de baixa intensidade. Até no conflito armado, há guerras de primeira e segunda ordem...

Mas queria recuar dois parágrafos, à frase cujo final acaba com a palavra "ético". É que desde há umas semanas, o príncipe ben Sulayem, o presidente da FIA, decidiu que as manifestações politicas não teriam lugar no automobilismo, para promover um desporto "apolítico" e "limpo". Tudo por causa do "Black Lives Matter" e de outras manifestações como a bandeira arco-íris, símbolo da luta LGBTIQ+, ou então, a luta pelos direitos das mulheres, que naquela parte do mundo, e por causa da religião, não valem muito. 

E a Formula 1 ainda pertence à Liberty Media. O que aconteceria se eles tivessem dito "sim" à proposta? A sede da FIA se transferiria para o Dubai ou Riyadh? Teríamos quantas corridas na Arábia Saudita? E já agora, quantas equipas seriam obrigadas a ter uma sede no meio dos camelos e das areias do deserto, em lugares que seriam estados dentro de estados? Não sei se sabem, mas por ali, os estrangeiros não cruzam com os locais. E nem falo de coisas com álcool, mulheres ao volante, internet e outros vícios "ocidentalmente decadentes"... 

Tenho pena que não pensemos na ética, ou que a deixemos de lado por maços de notas. É isso que nos faz humanos, ou se quiserem, tentamos ter uma moral superior a aqueles que acham que todos temos um preço. Nem todos fomos educados dessa maneira. E ainda bem que não. Mas é com ética que nos dá um pouco de humanismo, de empatia, da sensação de que há justiça. De que o dinheiro não serve para tudo - especialmente se quiser ser feliz e realizado. E em jeito de conclusão, se não tivéssemos ética, meus amigos, então os Mundiais e os Jogos Olímpicos iriam sempre ser em Riyadh, a meio de julho, e eles ganhariam sempre. Basta descarregarem os seus camiões de dinheiro.      

A Formula 1 continuaria, tenho a certeza. Mas se calhar, teria de arranjar amantes novos.

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