Sede da Apollo, Silverstone. Principios de Fevereiro.
Era mais um dia no escritório, com os chassis a serem montados na oficina e testando-os na pista ao lado. Uma pequena equipa de mecânicos estava por lá, neste dia especifico com Teddy Solana ao volante, pois iam experimentar algumas soluções mecânicas. Iria ser um dos últimos dias de teste antes de partirem rumo à Africa do Sul, onde a partir do dia 12 começariam um período de dez dias de testes, experimentando os novos compostos da Goodyear e preparando-se afincadamente para o 1º de Março, data da primeira corrida do ano.
Pete Aaron não estava na pista nessa manhã, pois iria receber um potencial cliente para um dos seus chassis mais antigos. Tinha colocado o chassis Eagle, com dois anos, à venda e logo apareceram alguns interessados, devido ao seu preço relativamente atractivo e as garantias de assistência por parte da fárica, pelo menos naquele ano. Pete tinha ideias de vender mais tarde naquele ano um ou dois dos novos chassis Apollo, mas isso nunca aconteceria antes do meio da época, pelo menos. À medida que os dias passavam, notava-se que Pete precisava de um verdadeiro director desportivo na pista, pois desdobrar-se entre o escritório e o asfalto era uma tarefa titânica, bastante mais coimplicado do que simplesmente guiar. E tinha encontrado um inesperado braço direito na figura da jovem Sinead O'Hara, irmã de John, o primeiro piloto da Apollo.
Contudo, nem John, nem Sinead estavam por lá, pois tinham ido visitar a mãe na Irlanda natal. Andy, o seu projectista, foi lá ver como é que o seu carro comportava, enquanto que Pete estava sentado na mesa a ler alguns dos artigos que apareciam na imprensa especializada, que naquela semana se debruçavam sobre o novo chassis da Jordan, considerado por todos como um carro revolucionário. E o próprio Autosport britânico, que na semana passada tinha feito elogios ao novo Apollo, perguntava se o novo chassis da Jordan seria um "win or wall", ou seja, se seria um sucesso nas pistas ou um embaraço monstruoso. Claro, nada se sabia ainda sobre as ameaças vindas de França, como o Matra, ou de Itália, na figura da Ferrari...
P
ete lia tudo com atenção, enquanto aguardava a chegada desse potencial comprador, mais um na lista de interessados. Mas ele sabia que esse não era um qualquer: tinha talento e algum dinheiro. O encontro estava marcado para as 10:30, e os minutos aproximavam-se.
Pelas 10:25, estacionava um Renault Alpine A110 Berlinette azul, com matricula francesa. Pete espreitou e ficou intrigado, julgando que seria alguém da Matra ou o seu amigo Pierre. Atento, viu sair dela um jovem rapaz, com óculos de aviador, camisola de gola alta branca e um casaco castanho de pele, com fecho-éclair até ao pescoço, pois fazia frio. Entrou dentro e depois de se anunciar à secretária, sentou-se com uma pasta nas suas mãos, esperando pela hora.
Mal se sentou, Pete levanta-se e vai ter com ele, estendendo-lhe a mão, anunciando-se:
- Olá, Pete Aaron. E a tua cara não me é estranha.
- Olá, chamo-me Alexandre de Monforte, e corria na Formula 2, afirmou, levantando-se.
Ambos ficaram a cumprimentar-se durante algum tempo, enquanto faziam contacto visual. Alexandre sorria sem mostrar os dentes, enquanto que Pete fazia o mesmo. Imediatamente veio à memória a corrida de Thuxton e o duelo com um outro piloto, cujo nome não se recordava naquele momento. E também se recordava que ele tinha sido no ano anterior um dos pilotos oficiais da Tecno, o fabricante italiano de Formula 2. Acabado o cumprimento, Pete apontou-lhe o escritório espaçoso e afirmou:
- Vamos para dentro. Ali falamos com mais calma.
Ambos sentaram-se. Alexandre não largava a pasta castanha, não muito grossa, provavelmente com alguns documentos que seriam interessantes para o caso. Logo a seguir, deixou-o no chão e tentou descontrair-se, cruzando as pernas. Pete sentou-se no cadeirão e disse:
- Creio que anda à procura de um carro.
- Procuro sim. Pretendo estrear-me na Formula 1.
- Interessante. Não arranjou lugar numa equipa oficial?
- Não, não posso. É que eu estou agarrado a um contrato.
- Como assim?
- Tenho um contrato assinado com a Tecno para 1970 na Formula 2. Dá dinheiro suficiente para ter uma época descansada, mas não posso assinar por outra equipa, que tenha seus chassis nesta categoria. Como a Jordan e a Matra tem as suas equipas...
- Estou a ver. E quer entrar na Formula 1 este ano?
- Sim, eles deixam-me contornar a questão, montando a minha própria equipa, e dando algum dinheiro. Essa parte já tenho, agora falta o chassis.
- Quanto é que está disposto a pagar pelo carro?
- Seis mil libras. Pelo chassis e pelo motor Cosworth, mais mil por cada motor que tiver de comprar, mas essa parte cabe a mim.
- Quanto é o contrato com a Tecno?
- Muito bom: 20 mil libras esta época. E arranjei mais 15 mil em patrocinios.
- De quem?
- Herdei do velhote, afirmou a sorrir.
- Como?
- Ahhh... desculpe, o meu avô. Ele faleceu o ano passado e deu-me uma parte da sua fortuna, e uma parte na Adega. A minha familia produz vinhos, sr. Aaron.
- E são bons?
- Se quiser vir comigo a uma loja aqui na Grã-Bretanha, estou seguro que encontrará a minha marca. Mas esse não é o meu unico patrocinador.
- Como assim?
- O Automóvel Clube do meu país decidiu investir na minha carreira. Este ano tenho cinquenta mil coroas sildavas para colocar o seu logotipo no meu carro, quer seja de Formula 2, quer seja de Formula 1. Ao câmbio actual, ronda as cinco mil libras.
Pete pensou. Esta era a melhor das ofertas que tinha tido, pois estava perante alguém com muito dinheiro para gastar, vindo de diversas fontes. Tinha um bom contrato, patrocinadores e pelo que tinha visto em pista, talento. Entregar um chassis com dois anos de idade seria até bom para ele, visto que com tantas restrições, seria o ideal.
- Porquê o Eagle-Apollo?
- Por uma questão de eliminação. Não posso ter chassis Matra ou Jordan. Não me interessam os BRM e a Ferrari não os vende, claro. Resta a McLaren, e à tarde falarei com o Bruce sobre isso.
- O que diz?
- Nada de especial, fala que daria um carro por cinco mil libras.
- Hmmm...
Na verdade, Alexandre fazia um pouco de "bluff". Bruce McLaren vendia quaisquer chassis por oito mil libras, desde que fosse do ano passado. Não vendia chassis novos, portanto, seria um pouco mais caro, mas por esta altura, só o "prize-money" da Can-Am lhe dava para sustentar os seus programas na Formula 1 e USAC, pois queria tentar a sua sorte nas 500 Milhas de Indianápolis, a corrida mais valiosa do planeta.
- Estaria disposto a pagar...
- Imediatamente. Depois de ver o seu carro, claro.
- Seja. Venha comigo.
Ambos foram para a oficina, onde viram os mecânicos afadigados à volta de um dos novos chassis da Apollo, pois o outro estava a ser rodado na pista, com Teddy ao volante. Num canto, relativamente esquecido, estava o carro verde e branco, já a caminho da sua terceira época, um pouco cansado de tantas batalhas, mas já com alguns prémios. Alexandre sorriu e disse:
- É este o carro que ganhou no México?
- Sim senhora. Mas não fomos nós que o projectamos.
- Eu sei, é um chassis do Dan Gurney. Quantos é que existem?
- Que eu saiba, quatro. Um está no museu, outro está nos Estados Unidos, um terceiro foi vendido para a Africa do Sul e este é o quarto.
Agachado, Alexandre colocava a mão no chassis para o "sentir". Admirado pela sua beleza de linhas, sorria ao contemplá-lo. Levantando-se, afirmou o que vinha na sua alma.
- É magnifico. Que tipo de assistência é que daria?
- Essencialmente peças. Ficaria ao lado da nossa boxe e qualquer sobra seria para si. E a manutenção seria aqui, na fábrica.
- Parece ser justo. Por seis mil, era capaz de aceitar.
- Otimo. Então temos negócio.
Ambos cumprimentaram-se, e logo a seguir afirmou:
- Contudo, não posso ir a Kyalami.
- Porquê?
- Há uma sessão de testes da Tecno em Itália nesse fim de semana. E eles querem ainda que faça uma prova de montanha no norte do país. Como estou contratualmente preso a eles, como é obvio, estou de fora. Só no International Trophy é que competirei com esse carro. Mas gostaria de antes disso, dar umas voltas, para me adaptar a ele.
- Otimo, acho que poderemos marcar isso.
- Excelente? Pode ser na próxima terça-feira?
- Sim... porque não? Só se formos ver na agenda, mas acho que é possivel.
Ambos rumaram para o escritório, onde Alexandre se baixou para pegar na mala castanha que tinha trazido consigo. Tirou para fora alguns maços de notas, algo que fez arregalar os olhos de Pete, pois não acreditava que tinha vindo para aqui com dinheiro vivo nas mãos. Ele se justificou, sorrindo:
- Achava que vinha pagar com um cheque? Nããão... achei que assim poderia alcançar a sua confiança. Espero que tenha o contrato à mão, sr. Aaron.
- Aqui está, Alexandre.
Ele leu o contrato de modo demorado, um conjunto de cinco folhas, garantindo os termos da compra do chassis Eagle, do fornecimento de peças, mecânicos e motores ao longo daquele campeonato de 1970. Para sua felicidade, ele poderia ficar com os prémios, caso alcançasse algum resultado de relevo, tal como fazia quando corria na Tecno de Formula 2: um bom contrato, mais os prémios e as taças. Assimou a sua rubrica, bem como Pete, levantaram-se e cumprimentaram-se, com Alexandre, em jeito de despedida:
- Sr. Aaron, até terça-feira.
- Até lá então, Alex. E trate-me por Pete.
- Excelente então. Até lá.
Alexandre pegou na pasta e saiu do escritório. Despediu-se rapidamente da empregada e ele o viu entrar no seu Alpine azul, arrancando a toda a velocidade. Sem que nenuum dos dois soubesse, este era o primeiro de milhares de encontros. Dentro de dez anos e meio, quando tudo acabar, terão forjado uma das amizades mais marcantes do automobilismo.
(continua)
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