terça-feira, 24 de janeiro de 2017

O fim de uma era

Chamado de "anão tenebroso" por um dos seus pilotos, o brasileiro José Carlos Pace, Bernie Ecclestone não foi - e nunca quis ser - uma personagem consensual. Adorador de ditadores - pois podem fazer o que quiserem sem interferências - o grande consenso sobre ele foi que ele viu o potencial das transmissões televisivas, em meados dos anos 70 e de as ter transformado numa máquina de dinheiro, tornando a Formula 1 bem atrativa. Esta passou de uma competição onde os mecânicos faziam tudo à vista, o dinheiro era pouco e o marketing arcaico, no mínimo, para uma competição onde as boxes são autênticos pavilhões, os circuitos são de primeira linha e o marketing desportivo é digno do Super Bowl americano. Aliás, é o próprio Bernie que disse certo dia que fazia de 15 em 15 dias aquilo que os Jogos Olímpicos e o Campeonato do Mundo de futebol fazem de quatro em quatro anos.

Levou a Formula 1 às paragens mais exóticas e controversas - Brasil e Argentina em tempos de ditadura em meados dos anos 70; África do Sul nos tempos do "apartheid", Rússia, Abu Dhabi e Bahrein nos dias de hoje - Ecclestone tentou atrair o maior dinheiro possível, e acabando por as distribuir pelas equipas... mas querendo ficar com uma parte para ele mesmo. Foi por isso que chegou à fortuna que tem hoje, avaliada em cerca de 3,1 mil milhões de euros, colocando-o entre os 500 homens mais ricos do mundo. É que sempre que geria o calendário e pedia o dinheiro aos organizadores, metade desse total ia para os cofres da então CVC Capital Partners, que lhe dava uma parte para o seu fundo pessoal, a Delta Topco. Em 2014, chegou a acumular cerca de 1500 milhões de euros, dos quais metade eram distribuídas pelas equipas, mas da metade que ia para a CVC, cerca de 15 por cento caia nas mãos de Bernie, direta ou indiretamente. No mínimo, eram 150 milhões de euros por ano, mas poderia ir até aos 225 milhões. Dava para gerir uma equipa do tamanho da Williams e ainda sobrava dinheiro...

Mas a presença deste senhor, nascido a 28 de outubro de 1930 no Suffolk britânico, começou bem antes, nos longínquos anos 50, quando ele era um mero aspirante à Formula 1, mas com muito jeito para os negócios. Depois de ter corrido muitas vezes em Brands Hatch, e de ter adquirido a Connaught (e tentou correr por duas vezes em 1958, sem sucesso), retirou-se do automobilismo por cerca de dez anos, após a morte de Stuart Lewis-Evans, do qual era amigo e "manager".

Em 1969, Ecclestone era o "manager" de Jochen Rindt. Foi ele que sugeriu que a sua carreira tivesse um pouco mais de marketing e publicidade, numa competição que começava a descobrir o dinheiro vindo dos patrocínios. Os contratos eram cada vez mais generosos, e os pilotos por vezes tinham dificuldade em gerir tanto dinheiro. Bernie diz que não havia contrato, mas era ele que montava, por exemplo, o Jochen Rindt Show, que acabou por ser a génese do Essen Motor Show, que existe até aos nossos dias.

Em 1971, com Rindt morto, Ecclestone decide aceder a proposta de Ron Tauranac para ser co-dono da Brabham, depois de Jack Brabham ter se reformado e rumado para a Austrália. Cedo Ecclestone e Tauranac começaram a divergir e no inicio de 1972, por cem mil libras, o anão ficou com toda a equipa. Cedo encontrou as pessoas que iriam ajudar a erguer a equipa - e o seu império. Logo em 72, surgiu Herbie Blash, e logo a seguir o projetista Gordon Murray. Em 1978, surgiu Charlie Whitting, primeiro como mecânico, depois como engenheiro. E pelo meio, os pilotos marcantes: Carlos Reutemann, José Carlos Pace e Niki Lauda. E carros como o BT44 e o BT46B, o "carro-ventoinha". E tropeções como os motores Alfa Romeo flat-12, potentes e pouco eficazes.

Em 1979, surge outro jovem brasileiro, Nelson Piquet, e também a oportunidade de controlar a Formula 1. Um contrato com televisões de todo o mundo lhe deu um valor de um milhão de dólares por cada uma das equipas de Formula 1 de então. Ele propôs distribuir esse dinheiro, mas eles não estavam interessados. Assim, ele, que tinha sido um dos fundadores da FOCA (Formula One Constructors Association) ficou com o controlo da FOCA... e boa parte do dinheiro. Passou a ser ele a elaborar o calendário e a negociar patrocinadores para a competição, especialmente com os donos dos circuitos e as televisões que transmitiam essas corridas.

Bernie, por essa altura, tem uma obsessão: os Estados Unidos. Quis uma corrida em Las Vegas e outra no meio de Manhattan, na Times Square. Do primeiro, foi um fracasso. Feito no parque de estacionamento do casino Ceasar's Palace, não atraiu muita gente e acabou após dois anos, porque Bernie queria mais dinheiro, de algo que nunca teve lucro. Do segundo, chegou a estar no calendário, mas depois foi cancelado. Aliás, por causa desse GP nova-iorquino que nasceu o GP da Europa, que nesse ano aconteceu em Brands Hatch, o circuito da sua infância...

Outras corridas surgiram em paragens americanas. Já havia Long Beach e Watkins Glen, mas depois surgiu Detroit, com a Formula 1 a correr na capital do automóvel americano. Em 1992, a competição tinha abandonado a América, em fracasso.

Nesse ano de 1979 surge o seu maior rival. Jean-Marie Balestre, um francês nove anos mais velho do que ele, tinha ajudado a fundar o karting, no inicio dos anos 60, e ser o presidente da federação francesa de automobilismo durante mais de dez anos, antes de ser o presidente da FIA e da sua vertente desportiva, a Federation Internationale de Sport Automobile (FISA). Arrogante, autoritário e com um passado bem duvidoso (nunca foi desmentida a sua colaboração com o regime colaboracionista de Vichy, apesar de ter processado os autores dessa 'calúnia'...), as personalidades chocaram forte e feio. E entre 1980 e 1982, a Formula 1 esteve à beira da divisão, entre a autoridade que fazia as regras (FISA) e a entidade que representava as equipas (FOCA).

O primeiro grande choque foi o GP de Espanha de 1980, cancelado por ordem de Balestre por causa da desobediência das equipas de um artigo do regulamento que obrigava os pilotos a aparecerem em conferências de imprensa. Sob pena do cancelamento das suas Super-Licenças, as equipas reagiram, não obedecendo à ordem e correram a corrida de Jarama, com ou sem autorização da FISA. Ferrari, Renault e Alfa Romeo não participaram, todos os outros ficaram e correram. Alan Jones venceu a corrida, mas o resultado não contou.

No final dessa temporada, Ecclestone anunciou um campeonato paralelo, onde as corridas americanas faziam o grosso do calendário, e que teria o seu começo em Kyalami, na África do Sul. Apareceram 19 carros, a corrida foi ganha por Carlos Reutemann, mas não contou para a pontuação. Se contasse, o argentino seria o campeão do mundo desse ano... mas na realidade, poucos apareceram para a corrida, e a Formula 1 sem a Ferrari não tinha a mesma graça. No final, o machado de guerra foi enterrado... temporariamente. Em 1982, a polémica do GP do Brasil fez com que as equipas FOCA boicotassem o GP de San Marino, corrido por apenas 14 carros. E como era uma corrida FISA... contou para o calendário, marcado pelo excitante (e controverso) duelo entre os pilotos da Ferrari, com consequências trágicas duas semanas depois.

Com a Formula 1 à beira de novo desastre, ambos os lados foram para o escritório de Enzo Ferrari, o decano dos patrões, e chegaram a um acordo: o Pacto de Concórdia, que é revisto a cada quatro anos, e onde se distribuem os dinheiros entre as equipas e a FIA, com Ecclestone a receber uma generosa parte. Primeiro, como dono da Brabham, depois como o patrão da FOM (Formula One Management). E era ele que lidava com o calendário, com tudo que era bom... e mau.

As polémicas nos anos 80 nem eram o excesso de corridas americanas. O espinho chamava-se África do Sul. Sob o regime do "apartheid", onde a minoria branca mandava sobre o resto da população, criando uma série de leis onde eles não tinham todos os direitos, incluindo o do voto, o resto do mundo decidiu boicotar, incluindo na área desportiva. Em 1985, a África do Sul tinha já sido expulsa da FIFA, do Comité Olimpico Internacional e até de organizações nos quais os sul-africanos eram bons, como o rugby e o cricket. A única excepção era a FISA. E tudo por causa de Bernie Ecclestone, que cobrava o que queria do governo sul-africano, em troca de ter a Formula 1, a única modalidade que lá ia romper o isolamento internacional que aquele regime já sofria.

Antes, tudo isso era tolerado, mas nesse ano, os demais governos acharam que já chegava. Pressões para o seu cancelamento começaram a surgir, forte e feio, e equipas como a Ligier e a Renault decidiram não ir. As televisões não transmitiram a corrida e muitos governos tentaram convencer os seus pilotos a aderir ao boicote. Não resultou, mas apenas 19 carros alinharam na corrida. No final, a Formula 1 só voltou a paragens sul-africanas em 1992, já o governo de minoria branca tinha abolido as leis do apartheid, legalizado o Congresso Nacional Africano e libertado os prisioneiros políticos, incluindo Nelson Mandela.

Passados mais de 25 anos, houve nova polémica politica a envolver a Formula 1. Em 2011, a Primavera Árabe varre os países muçulmanos, com as consequências que todos conhecemos. Se na Tunisia, tudo correu bem, noutros lados como a Síria, Egito e Líbia, entre outros, as coisas correram mal, com o regresso aos mesmos regimes autoritários, ou pior, guerras civis. O Bahrein, pequena ilha no meio do Golfo Pérsico não ficou imune à agitação social, e fez manifestações exigindo mudança, pois a maioria de origem xiita, era governada pela classe dominante, que é sunita.

Em 2011, essa agitação obrigou ao cancelamento da corrida nesse ano, mas as coisas correram mal para os agitadores, que foram reprimidos pela classe dominante. E em 2012, a coberto de "uma demonstração de unidade", decidiram voltar a organizar a corrida, perante os protestos da comunidade internacional. Bernie fez ouvidos moucos e tomou partido da elite governante, organizando a corrida até aos dias de hoje. Fala-se que todos os anos, o governo do Bahrein injeta 60 milhões de dólares por temporada e coloca clausulas que impedem que a Formula 1 corra num dos seus vizinhos, por exemplo, o Qatar. E apesar da repressão ter acalmado as coisas, a panela de pressão continua a agitar-se, esperando por nova oportunidade.

E hoje em dia, para além do "escolho" Bahrein, outros escolhos existem no calendário, como Abu Dhabi e Rússia, para não falar na aposta por circuitos asiáticos, cheios de dinheiro mas sem tradição automobilística. A Formula 1 correu na China, Coreia do Sul, Índia e Malásia, para não falar das corridas noturnas em Singapura, mas em 2017, arrisca a ver a Formula 1 fora desses lugares, depois de demonstrar que, do entusiasmo inicial, transformou-se em enormes dores de cabeça para os organizadores, que rescindiram os seus contratos antes do seu final, alegando que não tinham dinheiro para cobrir as exigências cada vez mais altas de Bernie.

Hoje em dia, os casos mais gritantes são os da Coreia do Sul e Índia, cujos circuitos estão literalmente abandonados.

O legado de Bernie Ecclestone na Formula 1 poderia ser francamente positivo. Tornou-se num desporto global, que gera centenas de milhões de dólares todos os anos. O seu estilo é controverso e a sua direção poderia ter sido melhor, dado por exemplo a falta de tacto em relação aos novos média, como as redes sociais, no qual foi demasiado lento e fora de tom. Caso tivesse ido embora no ano 2000, quando tinha feito 70 anos, a sua marca teria sido bem mais forte e bem mais favorável. Contudo, as escolhas dos últimos 15 anos, a começar com o famoso "acordo dos cem anos" com a FIA, as escolhas asiáticas em detrimento da Europa, a aposta na televisão por subscrição, priorizando o dinheiro a favor dos fãs, o encarecimento dos preços em todos os aspectos, fez com que o seu legado tenha erodido um pouco. E a sua saída é bem tardia, pelo menos em comparação com outros protagonistas do seu tempo, como Ron Dennis e Luca de Montezemolo, por exemplo. Ou até o seu amigo Max Mosley.

E mesmo não tendo cumprido a ameaça, ficou a intenção: Bernie só queria ir embora depois de morto. Foi por pouco, e esse apego ao poder afeta o seu legado.

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