Quem anda por aqui de forma regular, sabe que sou assíduo leitor do blog do jornalista britânico Joe Saward. Nascido a 14 de julho de 1961, Joe é jornalista desde 1984, quando se juntou à Autosport, e quatro anos mais tarde, começou a cobrir a Formula 1 até aos dias de hoje. Por estes dias, tem uma revista online, a GP+, em conjunto com outro jornalista britânico, David Tremayne.
Mas Joe escreveu dois livros interessantes, um deles sobre automobilismo: "Grand Prix Saboteurs", que fala sobre Robert Benoist e William Grover "Williams", dois distintos pilotos dos anos 20 e 30 - Williams foi o primeiro vencedor do GP do Mónaco, em 1929 - que foram espiões ao serviço do MI5 na II Guerra Mundial, na França ocupada pelos nazis. Ambos foram capturados e mais tarde executados. Contudo, pouca gente fora da Grã-Bretanha sabe que Joe é a terceira geração de um conjunto de pessoas extraordinárias, que passam por um comandante de navio, um clérigo anglicano e uma vitima de violação que passou o resto dos seus dias a ser uma ativista pelo direito das mulheres.
Por estes dias, Joe e a familia estão de luto: a sua irmã Jill morreu no passado dia 5, vitima de uma hemorragia cerebral acontecida dois dias antes. Ela tinha 51 anos, e o irmão faz-lhe uma sentida homenagem no seu sitio.
A história de Jill conta-se em duas penadas: a 5 de março de 1986, Jill, o seu pai e o namorado de então, David Kerr, foram agredidos na sua casa por dois ladrões. Eles ficaram gravemente feridos, mas recuperaram, enquanto que ela foi repetidamente violada. Tinha 21 anos na altura. O julgamento aconteceu no ano seguinte, e eles foram condenados a uma longa pena de prisão... mas foi apenas pelo roubo, e não pelas agressões ou a violação dela. Para piorar as coisas, o juíz, Joe Leonard, disse que "o trauma da violação não era suficientemente forte para ter uma pena particularmente pesada". Para terem uma ideia, o máximo que os violadores tiveram foi de cinco anos de prisão, só pelo crime em si.
O caso fez manchetes na altura. Até Margaret Thatcher, a então primeira-ministra, e Neil Kinnock, o então líder da oposição, criticaram duramente a pena dada e a maneira como o julgamento foi feito e as declarações do juiz. Anos depois, em 1993, quando se retirou, ele pediu desculpas públicas sobre o seu comportamento.
Por essa altura, na lei britânica, a vitima de violação poderia se proteger no anonimato. Ela decidiu não fazer. Abdicando desse direito, escreveu um livro sobre a sua experiência e ajudou a fazer um documentário sobre isso na BBC. Fez um grupo de paoio às vitimas de violação e outros abusos sexuais. E em 1988, foi aprovada uma nova lei que faz com que, caso haja sentenças leves em casos de violação, podem ser sujeitos a apelo a tribunais superiores. E as penas são mais pesadas.
Contudo, Joe e Jill não são os únicos famosos na familia Saward. Ambos são filhos de Michael Saward, um padre anglicano que nos anos 60 e 70, ajudou a reavivar a Igreja Anglicana para os tempos modernos, sendo autor de hinos religiosos, escrevendo sobre o assunto em temáticas controversas. Em 1975, escreveu "And So To Bed?" que causou furor na altura, pois falava sobre a visão cristã de algo tabu como o sexo, por exemplo.
Depois tornou-se tesoureiro da Catedral de St. Paul, cargo que ocupou até ao ano 2000, quando se retirou, mas antes disso, serviu no conselho geral da Igreja Anglicana durante vinte anos. Depois de se retirar, ganhou o direito de presidir a missas um pouco por todo o mundo, até à sua morte, a 31 de janeiro de 2015, num hotel na Suíça, vitima de enfarte. Tinha 82 anos e já era viúvo desde 2009.
Mas este não é o último membro famoso da familia. Duas gerações antes, um capitão da Royal Navy sobreviveu o tempo suficiente para assistir a três naufrágios, um deles o mais famoso do qual nunca ouviu falar: o "Empress of Ireland". E algum tempo antes, capturou um criminoso usando um meio de comunicação totalmente novo na altura: a rádio.
Comecemos a falar destas histórias identificando a pessoa e os seus feitos: Henry George Kendall. Nascido a 30 de janeiro de 1874, entrou na Marinha aos 14 anos de idade. Em 1900 tinha sobrevivido ao seu primeiro naufrágio, ocorrido ao largo da Terra Nova, com o navio SS Lusitania (não, não e o barco da Cunard que será afundado por um U-Boot quinze anos depois), e dez anos depois, era o capitão do SS Montrose, da Canadian Pacific Line, que fazia a ligação transatlântica entre a Grã-Bretanha e o Canadá.
A 31 de janeiro de 1910, Cora Turner Crippen desaparece da sua casa em Londres, depois de uma festa. Cora era uma artista de "music hall" - seu nome de palco era Belle Elmore - e ambos de origem americana, e era casada com Hawley Harvey Crippen. Contudo, tinham uma relação turbulenta. Apesar de casados desde 1904, traiam abertamente um com o outro. Crippen disse que ele tinha fugido para os Estados unidos com outro homem, mas a Scotland Yard nunca acreditou totalmente nessa história. Quando o cerco apertou, em pânico, ele fugiu para Bruxelas com a sua amante, Ethel Neave, que já usava abertamente as suas jóias.
Esse não foi a sua paragem final. A ideia era chegar aos Estados Unidos, de onde Crippen era natural, passando pelo Canadá. Embarcaram no SS Montrose e assentaram-se na primeira classe, com ele a crescer uma barba e Neave disfarçada como um rapaz. Só que por essa altura, a Scotland Yard descobre um torso ensanguentado, sem cabeça, braços e pernas: era o de Cora, identificada por uma cicatriz no abdomen.
No navio, Kendall reconhece-os e avisa, através do telégrafo sem fios, que estão a bordo do barco, mas tinham de se despachar. A Scotland Yard colocou Walter Dew, o detetive encarregado do caso, num navio da White Star Lane, o SS Laurentic, bem mais veloz do que o SS Montrose, e chegou primeiro ao Canadá, onde contactou as autoridades. Depois, disfarçou-se de oficial para subir a bordo do navio, quando este estava já no rio St.Lawrence e deu ordem de prisão a Crippen e a Neave.
O sucesso do caso fez manchetes no mundo inteiro. Fizeram-se canções e Crippen foi julgado e condenado à morte, sendo enforcado a 23 de novembro de 1910, aos 48 anos.
Quatro anos depois, Kendall volta a ser noticia, e é pelos piores motivos. A 29 de maio de 1914, Kendall era o comandante do "RMS Empress of Ireland", navio da Canadian Pacific Line construido oito anos antes, e era peça de cartaz da companhia, a par do "Empress of Britain". Nessa noite, fazia a ligação entre a cidade do Quebec a Liverpool, transportando 1477 pessoas. Ele tinha sido nomeado comandante do navio no inicio daquele mês, e aquele era a sua primeira viagem. Quando o barco chegou a Rimouski, ele ficou envolto em denso nevoeiro, reduzindo bastante a sua visibilidade, e pouco depois, sofreu uma colisão com o navio mercante norueguês "Storstad", afundando-se em poucos minutos. Desses 1477 pessoas, 1010 morreram.
O acidente aconteceu pouco mais de dois anos depois do Titanic, e com mais mortes do que este último, causou um impacto bem maior. O Storstad pode continuar, pois colidira de frente com o barco, e foi a colisão que causou o buraco que fez entrar a água e afundar de modo veloz. Kendall salvou-se porque foi atirado à água quando o barco começou a inclinar. No inquérito que se sucedeu, a tripulação do barco, incluindo Kendall, foi ilibada de quaisquer responsabilidades.
Hoje em dia, os restos naufragados do "Empress of Ireland" são um monumento histórico do Canadá e os mergulhos no local são fortemente condicionados devido às correntes e a profundidade onde está o barco, a cerca de 40 metros.
Contudo, poucos meses depois, Kendall estava de novo nas bocas do mundo. A I Guerra Mundial tinha começado e ele fora para Antuérpia, para coordenar a evacuação dos cidadãos ingleses da cidade, usando o SS Montrose, o navio que tinha comandado antes. Tudo isto antes dos alemães entrarem na cidade, a 4 de outubro. Depois, manteve-se na tripulação do HMS Calgarian, onde em março de 1918... sofreu o terceiro naufrágio da sua carreira, quando o seu barco foi torpedeado ao largo da Irlanda do Norte por um U-Boot alemão. Como das outras duas vezes, Kendall sobreviveu.
Depois da guerra, teve uma vida bem mais tranquila na Marinha Mercante, e viveu até à provecta idade de 91 anos, morrendo a 28 de novembro de 1965, num lar em Londres, já o seu neto estava a fazer o seu trabalho como vigário, e já os seus bisnetos eram nascidos. E Joe escreveu um livro sobre o seu distinto bisavô, dando como título "O Homem que Apanhou Crippen".
Contudo, poucos meses depois, Kendall estava de novo nas bocas do mundo. A I Guerra Mundial tinha começado e ele fora para Antuérpia, para coordenar a evacuação dos cidadãos ingleses da cidade, usando o SS Montrose, o navio que tinha comandado antes. Tudo isto antes dos alemães entrarem na cidade, a 4 de outubro. Depois, manteve-se na tripulação do HMS Calgarian, onde em março de 1918... sofreu o terceiro naufrágio da sua carreira, quando o seu barco foi torpedeado ao largo da Irlanda do Norte por um U-Boot alemão. Como das outras duas vezes, Kendall sobreviveu.
Depois da guerra, teve uma vida bem mais tranquila na Marinha Mercante, e viveu até à provecta idade de 91 anos, morrendo a 28 de novembro de 1965, num lar em Londres, já o seu neto estava a fazer o seu trabalho como vigário, e já os seus bisnetos eram nascidos. E Joe escreveu um livro sobre o seu distinto bisavô, dando como título "O Homem que Apanhou Crippen".
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