Por estes dias passa na RTP a série "1986", idealizada e escrita por Nuno Markl onde se fala sobre os adolescentes que crescem no inicio desse ano, onde em Portugal se vive a corrida presidencial mais concorrida de sempre, entre Freitas do Amaral e Mário Soares, uma eleição onde esquerda e direita se degladiavam para ver quem seria o primeiro presidente civil em sessenta anos.
Portugal tinha acabado de entrar na então CEE (agora União Europeia), e Anibal Cavaco Silva tinha acabado de ser eleito primeiro-ministro, num governo minoritário do PSD. Este tinha decidido apoiar Freitas do Amaral, antigo dirigente do CDS, contra Mário Soares, líder do PS e um dos pais fundadores da democracia, tal como Freitas. Foi uma eleição renhida, a única que resultou numa segunda volta e onde, contrariando todas as hipóteses, deu a vitória a Soares, por 51-48. Cerca de cinquenta mil votos ditaram o destino.
Mas se a série (se quiserem ver todos os episódios, podem ir aqui) serve para recordar esse tempo de euforia e calor eleitoral - pessoalmente, estava na Marinha Grande, na casa do meu avô, quando Soares levou a famosa bofetada que o levou a ser "levado ao colo" para a segunda volta, e depois à vitória - aqui, vou recordar desse ano, mas em termos automobilísticos. Onde Portugal já era um lugar onde os pilotos visitavam frequentemente, quer em termos de ralis, na altura um dos clássicos, quer também na Formula 1. Nesse ano, para o bem e para o mal, entramos na História.
1 - A Lagoa Azul (pelos piores motivos)
Em 1986, o Rali de Portugal era um dos clássicos do automobilismo, com a reputação de ser "o melhor rali do mundo", especialmente por causa do seu público apaixonado, que ia ver os carros a passar às dezenas de milhar de pessoas. E isso tinha tanto de belo como... assustador. Os pilotos ficavam assustados com a moldura humana que os ia ver passar, desviando-se apenas o suficiente para os deixar passar, a mais de 110 km/hora. Em suma, era uma tragédia à espera de acontecer, caso alguém desse um passo em falso.
A edição de 1986, que começou a 4 de março - poucas semanas depois do final das eleições presidenciais - não era excepção. Com todas as equipas de fábrica presentes - Audi, Peugeot, Lancia, Ford, MG e Toyota, entre outros - os carros italianos e franceses estavam entre os favoritos, com a Ford a estrear o RS 200, a sua tentativa de andar a par da concorrência. Um dos Ford RS 200 ia para as mãos de Joaquim Santos, que com o seu navegador, Dr. Miguel Oliveira, iriam estrear o carro naquele rali. Ambos estavam na equipa Diabolique, a mais conhecida equipa portuguesa de ralis, e lutavam pelo posto de melhor português com João Moutinho, que corria num Renault 5 Maxi Turbo apoiado pela Renault Portuguesa.
O primeiro dia do Rali de Portugal começava no Estoril, e contemplava uma passagem tripla pela Serra de Sintra, mais concretamente em classificativas como a Lagoa Azul. Isso atraía normalmente imensa gente de Lisboa e arredores, que queria ver passar os carros (chegou-se a falar que teriam ido meio milhão de pessoas!) que enchiam as estreitas estradas à volta da vila de Sintra, e eram motivo de preocupação para pilotos e organização, que já temiam as multidões, cada fez mais irrequietas.
Se as coisas correram bem na passagem dos carros de fábrica, a seguir vieram os privados e os portugueses, uma segunda linha de pilotos. Joaquim Santos ainda se adaptava ao RS200 - era o seu segundo rali ao volante do carro - quando perdeu o controle e bateu de traseira contra uma multidão, matando três pessoas e ferindo mais de 40. Nunca se soube muito bem o que se passou, mas a causa geralmente aceite foi que ele tentava se desviar de um espectador que tinha invadido a estrada e não tinha saído dali a tempo.
Quando se soube do acidente, os pilotos de fábrica recolheram-se ao Hotel Estoril-Sol para se conferenciarem, e no final do dia, decidiram que iriam boicotar o resto do rali, alegando falta de condições de segurança. Henri Toivonen, piloto da Lancia e vencedor do Rali de Monte Carlo, foi o porta-voz que anunciou a decisão à imprensa.
Contudo, a prova continuou com o beneplácito da FISA - Jean-Marie Balestre elogiou a decisão dos organizadores! - e sem os pilotos de fábrica, João Moutinho se declarou vencedor, com o seu Renault 5. Até hoje, é a única vitória de um piloto português no WRC, e a última de um Renault 5 Turbo.
Mas naquele dia, naquele acidente da Lagoa Azul, um certo rali tinha acabado de morrer. E os Grupo B também.
2 - Um carro de ralis tão veloz como o de um Formula 1?
Dias antes desse "maldito" rali, a Lancia estava em testes no Autódromo do Estoril e decidiu fazer algumas experiências com o seu carro, o Delta S4. No meio delas, passou por haver algumas voltas no circuito usado pelos carros de Formula 1. E cedo circulou o rumor, ou o mito, de que um dos carros, guiado por Henri Toivonen, tinha mercado um tempo que teria merecido um lugar na terceira fila da grelha de partida do Grande Prémio do ano anterior.
A história - ou o mito - voou depressa. E como cada conto acrescenta mais um ponto, e entre a verdade e a lenda, publique-se a lenda, ficou-se com duas ideias: de que Toivonen era realmente um piloto fora de série - ainda mais, dada a sua morte, pouco tempo depois - e o carro era exageradamente leve e veloz, logo, perigoso.
Toivonen - filho de Pauli Toivonen, um dos "finlandeses voadores" originais e campeão europeu de ralis - tinha experiência de pista antes de se enveredar pelas estradas, e fez o teste mais por diversão do que outra coisa. Na realidade, o carro andou bem, mas era muito mais leve do que um carro de Formula 1, e o tempo que teve dava para entrar numa grelha de partida de um Grande Prémio, mas não tão alto assim. E mesmo que desse, o peso a menos daria desclassificação...
Anos depois, Nini Russo, o diretor técnico da Lancia nesse ano, disse que Toivonen era o melhor dos pilotos de fábrica, e o que sabia lidar melhor com o carro. E falamos de uma equipa que tinha Markku Alen e Massimo Biasion, dois dos melhores pilotos de rali desse tempo.
“Algumas semanas antes do Rali de Portugal, houve um teste no Estoril. Foi um teste privado e efetivamente o Henri fez um bom tempo – é difícil dizer agora que tempo foi esse em concreto. Mas era um tempo que o colocava facilmente entre os 10 primeiros nos testes da Fórmula 1 que tiveram lugar no Estoril duas ou três semanas antes”, começou por dizer Russo, numa entrevista ao site da Red Bull, em 2016.
Ooops... não foi no GP, mas sim, nos testes de pré-temporada que a Formula 1 fazia na pista portuguesa. Mas como se disse atrás, nestas coisas, a lenda ficou em detrimento da verdade.
“Na minha opinião, o Henri foi o piloto que melhor interpretou o S4. Era um carro muito difícil. E atenção! Não estou a dizer que os restantes pilotos não tinham feeling com o S4. Mas o Henri tinha algo mais, tinha um feeling especial" concluiu.
Na realidade, aquele era um carro veloz. Mas não a esse ponto. Contudo, a lenda ficou. E já agora, podem ler este excelente artigo do site Razão Automóvel onde se explora esse mito.
3 - Uma fotografia para a eternidade
20 de setembro de 1986. Fim de semana do GP de Portugal. Ayrton Senna faz uma pole-position canhão nos minutos finais da qualificação, a bordo do seu Lotus-Renault. Era o oitavo naquela temporada, e aquecia ainda mais a disputa de um mundial onde tinham quatro candidatos ao título e prendia os espectadores à televisão, fim de semana sim, fim de semana não. E nessa temporada, a Formula 1 tinha feito uma inédita visita ao outro lado da Cortina de Ferro, mais concretamente à Hungria.
Nessa altura, faltavam três provas para o final de um campeonato bem disputado entre os Williams de Nelson Piquet e Nigel Mansell, o Lotus de Senna e o McLaren de Alain Prost, o campeão do ano anterior. Os Honda dominavam num ano difícil para a Williams, que vira o seu fundador, Frank Williams, sofrer um grave acidente no sul de França, que o deixou paralisado do pescoço para baixo.
Acabada a sessão de qualificação, Bernie Ecclestone, o patrão da Brabham - e da Formula 1 - convocou os quatro pilotos e a imprensa em peso para que tirassem uma foto juntos, no muro das boxes, empoleirados e com uma bancada cheia de adeptos em pano de fundo. A fotografia ficou para a eternidade como o símbolo da modalidade e da década, pois juntava quatro pilotos carismáticos: o esperto Piquet, o calculista Prost, o "brutânico" Mansell e o veloz Senna.
A corrida foi algo diferente: Mansell acabou por vencer, com Piquet a ser terceiro e Senna a andar num confortável segundo posto até ficar sem gasolina na última volta. O quarto posto final fez perder não só a chance de um pódio, como a hipótese de título mundial, que só chegaria dois anos depois.
A temporada iria acabar em Adelaide, na Austrália, onde as chances de título para Nigel Mansell iriam explodir de forma espectacular na reta Brabham, devido a um pneu, e Prost aproveitou disso para vencer o segundo dos seus quatro títulos mundiais. O mais improvável de todos.
Nunca se pode dizer anos 80 sem soletrar a palavra "Turbo". Pode-se falar dos clubes de video que apareciam como cogumelos, de que o Betamax era melhor do que o VHS, de filmes como "Regresso ao Futuro" ou de "Rambo", cantar "Tarzan Boy", dos Baltimora ou outros "one-hit wonders", jogar num computador Spectrum 48 ou 128K, mas não se pode esquecer que este era o tempo em que todos os motores, para serem velozes, teriam de ter um turbocompressor para comprimir o ar que passava e dar o dobro de potência... mas por vezes, com pouco controlo.
Em 1986, os motores 1.5 Turbo tinham já potências a rondas os mil cavalos em qualificações, mas os pilotos tinham dificuldades em controlá-los, especialmente por causa do "turbo lag". Os três ou cinco segundos de diferença entre o carregar do botão e a resposta do turbocompressor poderiam significar que o carro poderia acelerar numa curva, o que quase sempre era sinal de despiste.
E os pilotos começavam a ter dificuldades em controlar máquinas dessas. Se na Formula 1, os carros eram feitos de fibra de carbono, nos ralis, era diferente. Chassis tubulares com capa de fibra de vidro, tinham motores de 500 cavalos (e podiam chegar aos 700, se conseguissem mexer na pressão do Turbo) contra carros que pesavam pouco mais de 600 quilos, uma proporção de quase um cavalo para um quilo de peso, quase impossivel para um piloto normal controlar essas máquinas. Alguns pilotos sofriam aquilo que mais tarde se veio a chamar de "visão de túnel", onde a visão ficava distorcida, com a velocidade e a reação rápida que iriam ter.
O ano começava mal, em África: a 16 de janeiro, Thierry Sabine, o fundador do Rali Dakar, morria no Mali, vitima de um acidente de helicóptero, e em março, acontecia a tragédia da Lagoa Azul, onde se começou a questionar se os pilotos eram capazes de controlar máquinas que começavam a escapar pelos seus dedos...
A 2 de maio, o Mundial de Ralis estava na Córsega, para a quarta prova do campeonato. Na Lancia, Henri Toivonen liderava a prova com folga quando perdeu o controle do seu carro na 18ª especial, acabando numa ribanceira. Ele e o seu navegador, Sergio Cresto, acabaram por morrer, e a equipa italiana decidiu retirar os seus carros, em sinal de luto.
Duas semanas depois, durante uma sessão de testes no circuito francês de Paul Ricard, o Brabham de Elio de Angelis perdeu o controle na zona de Veriéres a mais de 225 km/hora, desintegrando-se. O piloto italiano foi retirado do seu carro ainda vivo, mas morreu no dia seguinte devido a graves ferimentos na cabeça. Tinha 28 anos. Duas semanas depois, na madrugada de 1 de junho, durante as 24 Horas de Le Mans, o Porsche 956 de Jo Gartner perdia o controle na zona das Hunaudriéres, acabando por se desintegrar e o piloto austríaco ter morrido na hora.
A FISA reagiu rapidamente e tomou a decisão de terminar com o Grupo B de ralis e substituí-los pelos carros de Grupo A, mais lentos, mas mais seguros, e aboliu os Turbo na Formula 1, obrigando-os a adoptar um motor de 3.5 litros, a partir da temporada de 1989. De uma certa forma, era o final de uma era que fez sonhar toda uma geração.
1 comentário:
Foi, na prática, o primeiro rali do Joaquim Santos com o RS200, pois no anterior, fez apenas uma classificativa antes de abandonar (num outro RS200, emprestado).
O Renault de Joaquim Moutinho não era Maxi, mas sim um Turbo Tour de Corse e não foi o último Renault 5 a vencer no mundial, já que Ragnotti venceria na Córsega com o Maxi Turbo.
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