quinta-feira, 2 de novembro de 2023

A imagem do dia




Kalle Rovanpera é provavelmente um dos melhores pilotos da atualidade. E tem uma coisa interessante: aprendeu desde criança a arte de guiar. Na Finlândia, no inverno, quando os lagos congelam, são verdadeiras pistas improvisadas onde qualquer um pode levar um carro e praticar, desde que se consiga chegar aos pedais. E Kalle, filho de Harri Rovanpera, que correu em ralis no final do século passado, começou desde os oito anos a conduzir, num Toyota Startlet azul nos lagos congelados nas traseiras da sua casa finlandesa. E como ele tem pelo menos quatro meses de gelo por ano, aproveitou muito bem.

Para chegar lá acima, preparou-se desde muito cedo. Começou a competir aos 15 anos, aproveitou alguns países vizinhos para mostrar a sua capacidade de guiar. Chegou, temporariamente, a correr com licença letã para ter uma temporada em ralis para apurar as suas capacidades. E mal teve 18 anos, conseguiu uma licença da FIA para poder competir em ralis do Mundial. Primeiro num Skoda do WRC2, e depois, quando a Toyota lhe deu um carro para poder explorar a sua capacidade, aproveitou-a.

Kalle fez 23 anos há um mês, a 1 de outubro. Agora é bicampeão do mundo, numa temporada absolutamente regular. Só desistiu em uma ocasião - ironicamente, na sua Finlândia natal - mas nos outros ralis, não passou abaixo do quarto lugar. A sua calma ao volante e o seu à vontade é mesmo típico de campeões, algo que muito poucos são capazes de conseguir. Talvez os "Sebastiões" franceses, que dominaram os ralis nas últimas duas décadas.

Mas no meio disto tudo, Kalle poderá ter o maior oponente de todos: ele mesmo.

Mal acabou o rali da Europa Central, voaram os rumores. Que deseja ter uma temporada parcial em 2024, que anda farto de ralis e quer ter uma vida normal, o de qualquer jovem, como eu e tu, caro leitor, que tem o Exército à perna porque na Finlândia, o serviço militar é obrigatório - agora, imaginem isto nesta altura do século... - e claro, que ainda não definiu a duração do seu novo contrato.

Todas estas conversas começam a fazer pensar que, na busca da sua imortalidade automobilística, pode-se ter sacrificado o ser humano. E um jovem de 23 anos, que fez isto toda a sua vida, não conhece outro mundo para além deste. E poderá estar a começar a ficar farto desta ultra-profissionalização que é o desporto destes tempos que correm, onde o vencedor fica com tudo, e não há perdão para o segundo classificado.

A imprensa alemã fala disso, dessa exaustão. Se um garoto dessa idade deseja uma pausa depois de dois campeonatos do mundo, bem sucedido, piloto de fábrica, o melhor piloto da sua geração, que destrona os seus adversários, que estão a 110 por cento o tempo todo para o bater, imagino os outros. Poderemos imaginar que será fraco? Se calhar, não. Se calhar, é ele, o ser humano, que pode ter feito um pacto onde, chegado ao topo, deseja voltar a ser humano e descansar por uns tempos e ser um tipo normal. 

Se assim for, então nós devemos fazer esta pergunta a nós mesmos: porque exigimos a essa gente que sejam super-humanos? Para ganhar uma "conversa de café"?       

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