domingo, 3 de setembro de 2017

Convições do foro psicológico

Em 1966, surgiu a Canadian-American Challenge. Era uma competição fascinante: carros semelhantes aos GT's, de chassis aberto, motores V8 e... muito poucas regras. Bastava construir um chassis, montar um motor e já está. Os prémios para o vencedor eram chorudos: quinhentos mil dólares, uma fortuna para a época. Em 1967, Bruce McLaren decidiu fazer os seus chassis para a competição, e em menos de dois anos, transformou aquilo no "The Bruce and Denny Show", dominando a competição e arranjando o dinheiro necessário para fazer avançar a sua equipa na Formula 1 e na IndyCar. Foi a Can-Am que permitiu o crescimento da sua equipa e fazê-lo famoso em todo o mundo.

A Can-Am foi uma loucura: grelhas cheias, motores potentes, os melhores pilotos da América e da Europa corriam por lá. Mas seis anos depois, as coisas estavam descontroladas. A Porsche trouxe um 917, modificou-o, colocou um turbo no seu flat-12 e arranjou 1500 cavalos no seu carro. Mark Donohue dominou a competição em 1973, até que no final desse ano... surgiu a primeira crise do petróleo. Descobriu-se que aqueles motores eram obsoletos, de tão gulosos que eram. Ao fim de um ano, a Can-Am acabou.

A lição era esta: sem controle, e dependendo apenas das equipas de fábrica, uma determinada competição está condenada a desaparecer em poucos anos, por muita popularidade que consiga pelo meio. A Historia do automobilismo está cheia destes exemplos, principalmente nestes últimos anos. E desde que este blogue existe, há dez anos, vi surgir e desaparecer competições que pegam em que pegam em certas ideias que... não pegam, como a A1GP e a SuperLeague Formula. E a razão é esta: tem de apresentar algo novo, que difere dos outros. E porquê a Formula E pegou e não estas que falei? Porque foram para o lado errado. Não apresentaram tecnologia. Para quê ter chassis iguais com motores semelhantes aos de um Formula 2, por exemplo? Por causa dos clubes que torcem ou pelo orgulho nacional? Sem isso tecnologicamente diferente, acabaram em poucos anos e passaram a ideia de serem mais do que um mero lavar de dinheiro, como certas pessoas defendem sobre aquilo que foi a SuperLeague Formula.  

Mas então, porque as pessoas reclamam da Formula 1 atual, numa altura dos volantes complicados, "com tantos botões", do barulho dos V6 Turbo, dos Halos e Shields, quando não reclamaram no passado dos HANS ou dos chassis de carbono?

Ao longo destes tempos de redes sociais, de vez em quando dou por mim entender as razões porquê as pessoas reclamam incessantemente sobre isto - talvez os meus amigos psicólogos e psiquiatras entendam isto melhor do que eu - mas estou a chegar à conclusão de que o problema não é o automobilismo, as regras em si ou a competição. É a psique humana. Não consigo explicar isto da melhor maneira possível - os mais experimentados fazem isso melhor - mas daquilo que entendo é que as pessoas passam para o seu desporto favorito as suas ideias, convicções, sonhos e fantasias. Algures na sua vida, viram algo que os fascinou, um pouco como o ideal bíblico de Adão e Eva, o Eden antes do Pecado Original. E acham que qualquer desporto - neste caso em particular, a Formula 1 - deveria voltar a esse Éden. Daí falarem que deveriam voltar a ter os motores atmosféricos, que a Ferrari deveria voltar a ter motores V12, que deveriam abolir as ajudas eletrónicas (os famosos botões no volante...), entre outras coisas.

E da mesma maneira como o ser humano tenta voltar a esse Éden que provavelmente nunca existiu, embarcando em utopias perigosas, com consequências catastróficas, sempre achei que "voltar para trás" é uma ideia perigosa. Esses Edens morreram, paz às suas almas, deve-se seguir em frente.

Contudo, insistem nisso. E no fundo, no fundo, acaba por ser uma ideia perigosa. O automobilismo é tecnologia, sempre foi tecnologia, é um dos seus pilares. Desde a invenção do automóvel e a sua primeira corrida, naquele ano distante de 1894, que a tecnologia faz parte dela, é um dos seus pilares. Foi a tecnologia que permitiu a evolução do automóvel desde as frágeis carruagens sem cavalos às máquinas de alumínio e fibra de carbono de hoje em dia. Que fez evoluir os motores a combustão, que aplicou supercompressores e turbocompressores, e agora, sistemas híbridos e elétricos cada vez mais potentes e com maior autonomia. Que fez desenhar e redesenhar chassis, cada vez mais aerodinâmicos para que sejam carros fluidos, para serem mais eficientes. Que fez colocar cintos de segurança, airbags e sistemas eletrónicos de auxilio, para que essa máquina, qual cavalo selvagem, não acabe por ser uma máquina de matar às mãos da pessoa que o conduz. O automóvel, como sabem, moldou o século XX tal como o conhecemos. Retirar a tecnologia do automobilismo é, de uma certa forma, condená-lo à sua extinção.

De uma certa forma, o ser humano comum, de forma subconsciente - ou não - odeia tecnologia porque não a compreende. E nestes tempos de populismo perigoso, as pessoas estão a virar-se contra a Ciência. Muitos dos que acham os carros elétricos como "meros aspiradores" ou "liquidificadores", odeiam-nos porque começaram a ver que um mero Tesla come Mustangs ou Camaros ao pequeno-almoço, numa qualquer arrancada na California. E isso mexe-lhes nas suas convições automobilisticas, as suas "biblias". E se formos ver melhor, muitos desses seres humanos são os mesmos que começam a acreditar que os pequenos homenzinhos verdes andam entre nós, ou que a terra é plana ou que não descendemos dos macacos, mas sim do Adão e Eva, e que as vacinas são más. Em suma, odeiam a tecnologia, mas - que ironia! - usam smartphones e "laptops" para transmitir as suas ideias e frustrações através das redes sociais e Youtubes da vida. 

E isso é perigoso para a evolução da humanidade. Não preciso de apontar exemplos, o melhor deles é o atual inquilino da Casa Branca, a nação mais poderosa do mundo.  

Em suma, as entidades como a Liberty Media podem ouvir o que o povo quer, não perdem nada em fazê-lo, mas também tem de saber separar o trigo do joio. Saber que poderão querer uma simplificação das coisas, mas também têm de dizer aos saudosistas que o tempo dos chassis de alumínio acabou, e que os pilotos não vão saudar Jean Todt em todos os inícios de Grande Prémio repetindo a frase dos gladiadores em Roma (Ave Caesar, morituri te salutant - Avé César, os que vão morrer saúdam-te). E que se a FIA quer segurança, é isso que vão ter. Porque... sejamos honestos, qual é a sanidade mental desse "senso comum"?

De uma certa forma, o futuro deve ser este: primeiro, não transformar a Formula 1 na próxima Can-Am. Segundo, nem tudo que os fãs dizem é correto. Alguns, até, só querem mal, mesmo não sabendo... ou não.

1 comentário:

Ismael disse...

Excelente artigo. Parabéns por haver alguém que diz as verdades. (Nota: para muitos, a Fórmula 1 acabou em... 1968, quando houve uma crise monstruosa porque a Lotus se atreveu a trazer essa coisa horrorosa que era o primeiro patrocínio comercial. Que horrível ideia que ia matar o desportivismo.)