domingo, 8 de junho de 2025

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O automobilismo tem grandes histórias de pilotos que, contra todas as possibilidades, foram capazes de arrancar grandes feitos. O século XX está cheio de momentos onde coisas que pareciam ser impossíveis acabaram por acontecer… quase. E são celebrados como heróis.  

Contudo, no caso de Pierre “Levegh”, a sua história é ao mesmo fascinante e trágica. Desportista nato, entrou tarde no automobilismo, foi a tempo de grandes feitos, mas o seu final é marcado pelo pior acidente da história do automobilismo, que aconteceu há precisamente 70 anos.  

Nascido a 22 de dezembro de 1905 em Paris, batizado como Pierre Eugène Alfred Bouillin, cedo mostrou-se apto para o desporto. Praticou hóquei e ténis, depois dos 30 anos, passou para o automobilismo. Adotou o apelido de Levegh em homenagem ao seu tio, Aflred, que usou esse apelido para se esconder da família – o oficial era Velghe. O seu tio fora um dos pioneiros do automobilismo francês, nascendo em 1870 e morrendo em 1903 em Pau, vítima de tuberculose. 

Pierre cedo elegeu uma prova de eleição, as 24 Horas de Le Mans. A sua primeira participação foi em 1938, num Talbot, correndo ao lado de Jean Trevoux, onde não chegaram ao final. No ano seguinte, correu num carro inscrito por Luigi Chinetti, tendo René Le Bégue como seu co-piloto, e novamente, abandonou a corrida, depois de 102 voltas completadas, por causa de problemas na ignição. 

Com a sua carreira interrompida por causa da II Guerra Mundial, só regressou ao mesmo lugar em 1951. Antes, participou e, dois Grandes Prémios, pela Talbot-Lago, com o melhor resultado a ser um sétimo lugar no GP da Bélgica, em 1950. Na temporada seguinte, participou em mais três corrida oficiais, conseguindo um oitavo lugar na corrida da Bélgica. 

Na sua primeira participação em Le Mans, depois de 12 anos, ao lado de René Marchand, acaba na quarta posição, um bom resultado a bordo de um Talbot-Lago, e com ele já com 45 anos. Mas o mais fantástico está para vir.  

No seu regresso, em 1952, alinha mais uma vez num Talbot-Lago, ao lado de René Marchand. Nessa altura, nos regulamentos, não havia nada que impedisse um piloto de fazer 24 Horas de condução seguidas num carro, desde que o outro piloto fizesse um tempo de andamento mínimo. Foi também nessa edição que se assinalou o regresso da Mercedes-Benz à competição, desde 1939, com a marca alemã a inscrever três carros, bem como a estreia da Porsche nestas andanças. E todos com pilotos alemães, sendo o mais famoso Hermann Lang, que tinha participado em Grandes Prémios antes da II Guerra Mundial. Os carros, modelo 300 SL, tinham a sua potência limitada a 165 cavalos para poderem durar toda a corrida.  

Havia mais marcas presentes: Lancia, Aston Martin, Nash-Healey, Ferrari e Jaguar, entre outros. E entre os favoritos estava gente como Stirling Moss e Alberto Ascari, o primeiro num Jaguar, o segundo num Ferrari.  

A corrida começou com Briggs Cunningham na frente, seguido por Moss e Ascari, com Levegh em sexto. Contudo, o italiano parou nas boxes com problemas no seu Ferrari, enquanto o inglês parou com problemas de sobreaquecimento. Isso colocou Robert Manzon, no seu Gordini, na liderança, seguido por André Simon. Enquanto isso acontecia, os Mercedes mantinham o seu andamento conservador, num jogo de espera, obedecendo às ordens do seu chefe de equipa, Alfred Neubauer

Manzon, que fazia dupla com Jean Behra, manteve a liderança quando chegou a noite, com o segundo classificado a ser Levegh. Ele continuou assim, mas a meio da noite, ficou com a liderança quando um dos travões do Gordini de Manzon falhou e teve de ir às boxes, onde depois de alguns minutos, os mecânicos consideraram que correr assim era perigoso. Levagh ficou com a liderança, mas não iria passar o carro para Marchand: o motor vibrava de uma maneira estranha e decidiu permanecer ao volante, não querendo que o seu companheiro de equipa ficasse com o ónus de uma quebra no motor.  

Um pesado nevoeiro recebeu os pilotos antes do amanhecer em Le Mans, ao ponto de terem acontecido alguns sustos porque os pilotos não conseguiram parar nos sítios indicados. Nessa altura, Levegh tinha uma grande liderança sobre os Mercedes sobreviventes, e quando Neubauer deu a ordem para atacar a sua liderança, ele já estava longe. E isso entusiasmava os franceses, não só por ter andado todo este tempo ao volante, como ainda por cima, corria contra os carros alemães! 

Apesar da vantagem, Levegh não queria ceder o volante. E à medida que as horas passavam, os franceses ficavam crescentemente entusiasmados com o que se passava. Contudo, dentro do volante, havia drama: Levegh sofria os efeitos do cansaço de tantas horas ao volante, e piara piorar as coisas, no seu Talbot, o seu conta-rotações já não funcionava. E preocupado com o estado do motor, metia marchas de forma algo errática. E a uma hora do fim, o carro o deixou mal, quando o carro ficou parado na Maison Blanche.  

Nunca se soube muito bem se foi o cansaço que o obrigou a puxar demais pelo motor, se ele não conseguiu engatar a marcha suficientemente bem para poder avançar e evitar que o motor e a caixa de velocidades rebentassem. O certo é que, tão perto do fim e de, se calhar, conseguir algo inédito no automobilismo, o carro não aguentou mais o esforço de 22 horas e 40 minutos, sempre a andar, parando apenas para trocar de pneus e reabastecer. No final, os Mercedes conseguiram uma dobradinha, logo no seu regresso ao automobilismo depois da guerra, com Hermann Lang no círculo dos vencedores, ao lado de Fritz Reiss. Quanto a Levegh, a desilusão era mais que presente, mas tinha conquistado o aplauso do público, e a admiração dos seus concorrentes. 

Quando regressa em 1953 a Le Mans, consegue um oitavo lugar a bordo de um Talbot-Lago, com Charles Pozzi a seu lado, para abandonar no ano seguinte.  

Em 1955, Levegh tinha 49 anos, a caminho dos 50. Já sentia o peso da idade nos seus ombros, e já pensava em colocar o capacete de lado. Contudo, nesse ano, a Mercedes faz-lhe uma proposta irrecusável, que é de correr na sua equipa oficial, num dos 300 SL, ao lado do americano John Fitch. A armada alemã vinha armada: Juan Manuel Fangio, Stirling Moss e Karl Kling eram alguns dos pilotos que faziam parte, numa altura em que corriam na Formula 1… e dominavam. 

A corrida foi um duelo entre Mercedes e Jaguar, uma armada britânica comandada por Mike Hawthorn, e tinham uma tecnologia a seu favor: travões de disco, numa altura em que os carros tinham travões de tambor – os Mercedes tinham uma espécie de asa hidráulica que ajudava nas travagens, mas não era tão eficaz quando os travões britânicos. 

Pela terceira hora, Hawthorn e Fangio andavam lado a lado nas retas e curvas de La Sarthe, não cedendo metros um ao outro, e o recorde da volta já tinha caído várias vezes ao longo da corrida. Não muito longe estava Levegh, que estava a perder uma volta aos dois, e a ultrapassagem iria acontecer perto da linha de meta, ao lado das boxes. Um quarto carro também andava por ali, o Austin-Healey de Lance Macklin, que ia às boxes para se reabastecer.  

Levegh, vendo o que se passava, tentou avisar aos pilotos – especialmente Fangio - que estavam atrás dele que a via das boxes estava obstruída, por causa de Macklin, que andava mais lento e também ia ser dobrado. Mas imediatamente a seguir, Hawthorn foi avisado pelas boxes que era hora de parar e ele, com os seus travões de disco, abrandou drasticamente, imediatamente depois de ter passado Macklin, que ia a 180 km/hora. Assustado, guinou para a esquerda, indo para a trajetória de Levegh, que travou fortemente – as marcas de pneus ficaram marcadas no solo – mas não conseguiu evitar o embate no carro de Macklin e foi catapultado contra as bancadas, matando-se e mais 80 pessoas, naquele que foi o pior acidente da história do automobilismo. Muitos dos que morreram foram atingidos pelo motor e o elemento auxiliar de travagem que tinham sido arrancados no embate do carro contra o muro que separava a bancada da pista. 

Levegh está enterrado no cemitério Pierre Lachaise, em Paris, curiosamente, na mesma sepultura familiar que o seu tio.

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