quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Nos 80 anos de "Nicha" Cabral (parte um)

Nesta quarta-feira, discretamente, comemoram-se os 80 anos daquele que foi o nosso primeiro piloto de Formula 1 português: Mário de Araujo Cabral, o popular "Nicha". Para os que conhecem mais ou menos o que ele foi, sabem que foi um "bon vivant", cuja biografia foi publicada há mais de dez anos (em 2001, para ser mais exato) e creio eu, está esgotada há já algum tempo. 

Filho do Conde de Vizela, que construiu uma casa modernista no centro da cidade do Porto (e que hoje em dia faz parte do Museu de Serralves), Mário Manuel Veloso de Araújo Cabral começou cedo a sua aventura automobilística, aos 21 anos, com um Triumph TR2 de 90 cavalos que foi dividida em duas partes: a primeira, com os monolugares de Formula 2 e Formula 1, e a segunda, com os carros de Endurance e de Turismos, naquela que viria a ser a sua segunda casa, que era a Angola colonial, e que tinha um panorama automobilistico pujante, mais pujante que a "Metrópole" à beira-mar plantado.

Mas "Nicha", antes do automobilismo, era sobretudo um apaixonado pelo desporto. Praticou ginástica como federado, chegando a sonhar com os Jogos Olimpicos, mas o automobilismo surgiu bem cedo e como os resultados foram bons, experimentando outros carros, como Alfa Romeo Giulietta Spider ou o Mercedes 300 SL. A sua oportunidade de pilotar um Formula 1 apareceu cedo, em 1959, no Circuito de Monsanto. Tinha 24 anos e surgiu a oportunidade de guiar um Cooper T51 de motor traseiro, que começava a ser "o carro da moda" e que iria ditar o fim dos motores à frente na categoria máxima do automobilismo. 

Apesar da tenra idade e da pouca experiência, "Nicha" aproveitou a oportunidade providenciada pela Scuderia Centro Sud, cumpriu e levou o carro até ao fim, no décimo (e último) posto, a seis voltas do Cooper vencedor de Stirling Moss. E o mais interessante é que ele conseguiu o lugar... após um teste de 30 minutos, como contou em março de 2012 numa entrevista ao jornal português i.

" (...) O Mimmo Dei [patrão da Centro Sud] disse ‘vamos lá ver como ele anda na Formula 1’. E andei com o carro, em Modena. Meia-hora.

- Só?

- Sim, sim. Porque o carro não se podia partir, etc e as coisas. O Mimmo Dei andava sempre aflito de dinheiro. Vim para Monsanto sem conhecer o carro."

Mais interessante ainda foi a corrida. Como foi dito algumas linhas acima, "Nicha" chegou ao fim no décimo posto, mas havia uma história bem engraçada, demonstrativa da ingenuidade das coisas na altura e do perfeito desconhecimento da Formula 1, e isso envolveu a ele com o Ferrari de Tony Brooks.

"- E como lhe correu o GP?

- Bem, francamente bem. Acabei em 10º lugar mas há uma história engraçada. Nas três últimas voltas, o Terry (sic) Brooks vem coladinho a mim. O meu carro já estava a falhar por todos os lados mas o dele falhava ainda mais. Ainda assim, fiz-lhe sinal para me passar porque julgava que ele estava à minha frente e ia dar-me uma volta de avanço. 

- Ahhhhhh 

- Pois, ninguém das boxes dizia nada, estavam lá sentadinhos a ver a corrida, e eu pensava que o Ferrari do Brooks ia dobrar-me. Qual não é o meu espanto quando percebo no final da corrida que caí de 9º para 10º, através do Terry (sic) Brooks. Veio ter comigo a dizer-me ‘Mario, you’re fantastic, thank you’ e eu feito parvo a olhar para ele como quem diz ‘mas tu queres ver’. Ficámos sempre amigos a partir daí [risos]."

- Nessa corrida, houve um famoso acidente entre o Phil Hill e o Graham Hill.

- E outro com o Jack Brabham. Comigo!

- Nãããããooooo.

- Foi assim: ele estava a discutir o primeiro lugar com o Moss. Íamos na auto-estrada a entrar em Monsanto, eu olhei por um dos retrovisores e vi o nariz do carro dele a aproximar-se. Pensei ‘olha, vai ultrapassar-me nesta recta’ e cheguei-me à direita para ele ter espaço à esquerda. O que é que ele pensou? O contrário! Quando ele percebeu que eu já não ia para a esquerda, era tarde de mais. Sem espaço para entrar por fora naquela curva, foi de frente e bateu no vértice do triângulo.

- E depois?

- Ele ficou ali e eu continuei.

- Nas boxes, terminada a corrida, veio falar comigo. Estava furioso, a protestar. ‘Why don’t you break sooner?’ perguntou-me ele. ‘A culpa foi tua, eu não saí da minha trajectória. E mais, dei-te o espaço para avançares à vontade. Ninguém tem culpa que tu penses mal’. Sabe uma coisa? ... Ele nunca mais se esqueceu de mim. Anos depois, escreveu as suas memórias: ‘Não acabei o GP Portugal-59 por causa de um ‘very dangerous local boy’ [risos].

No ano seguinte, a Formula 1 estava de novo no Porto, o seu "quintal favorito", e "Nicha" voltou à carga com o mesmo carro, da Scuderia Centro Sud. Andou bem nessa corrida - chegou a rondar os pontos - mas um acidente na volta 38 esmagou-lhe as esperanças de um bom resultado.

Apesar dos rasgos promissores, a carreira teve de parar por uns tempos para cumprir o serviço militar obrigatório. Ficou lá dois anos e pelo meio foi a Angola, local onde se apaixonou e onde viria depois viver boa parte da sua vida. Somente voltou ao automobilismo em 1963, e claro, voltou a tentar a Formula 1, na equipa que o acolheu, a Scuderia Centro Sud, que corria com um Cooper T60, já um pouco mais desfasado da concorrência. O regresso foi no desafiador Nurburgring Nordschleife, e a sua corrida terminou na sexta volta, com a caixa de velocidades danificada.

"Pois... Caixa. Naquele tempo, nunca estavam afinadas. Ninguém se preocupava por aí além com isso. Sabe, o carro não tinha grande manutenção. Tirar os motores e abri-los, ninguém o fazia com frequência. Limpavam o motor e está bom.", disse Nicha, na entrevista.

Na corrida seguinte, em Monza, acabou por não largar. "(...) em Monza, percebi que o motor estava com problemas. Avisei as pessoas de direito, ‘atenção que é preciso ver isto’, mas ninguém fez caso. É claro, o carro nos treinos começou logo a aquecer por ali fora e fizemos o penúltimo tempo, mas não participámos na corrida. Demos o lugar ao [Giancarlo] Baghetti e os italianos deliraram. Tenho para aí uma reportagem intitulada ‘La cavaleria de Cabral mete Baghetti in pista.” 

Em 1964, aceitou o desafio da Derrington-Francis, que nas cinzas da fracassada aventura da ATS (Automobili Turismo e Sport) de Carlo Chiti, Alf Francis (mecânico que ganhara nome com Stirling Moss) e Vic Derrington decidiram pegar no motor ATS e fazer melhor onde outros tinham fracassado. Detalhe interessante: calçaram pneus Goodyear, naquela que iria ser a primeira vez que a marca americana faria a sua primeira aparição na Formula 1.

"Olhe, fui o primeiro piloto da Formula 1 a correr com Goodyear. Isto é muito engraçado. A Goodyear não estava preparada para isso mas o Alf Francis, mecânico do Stirling Moss e grande amigo meu, sugeriu a um big boss da Goodyear usar os pneus num GP. Testámos em Monza e corremos com eles. E realmente resultou. Os pneus funcionavam, davam mais suavidade que os Dunlop, pelo menos em relação ao meu carro. A Goodyear entrou então na Formula 1. O início de uma bela aventura!"

Estrearam-se em Monza, e conseguiu o 19º tempo em 21 carros inscritos. Ao longo da corrida, esteve sempre na frente do veteranissimo Maurice Trintignant e do jovem americano Peter Revson, até que a ignição do seu carro falhar na 25ª volta.

Derrington-Francis esperavam que este ensaio fosse o primeiro de muitos, e quiseram "Nicha" para a temporada seguinte. Mas certo dia, pediram a opinião de Dan Gurney sobre o conjunto. Ele acedeu, mas o teste correu mal. Teve um acidente e o chassis ficou irrecuperável, e a aventura ficou-se por ali.   

Por essa altura, "Nicha" queria o sonho da Formula 1, mas andava também na Formula 2, a bordo de chassis como os da Brabham. Não tanto sustentado pela sua fortuna, mas mais pelas representações portuguesas de algumas marcas como a BMW. Conseguiu alguns bons resultados, batalhando diretamente contra Jim Clark, por exemplo. Mas a meio de 1965, em Rouen, quando tinha um Brabham BT16 inscrito pela Sorocaima, por muito pouco não acabava por ali. O acidente foi bem grave, e atirou-o para a cama de um hospital. Foram seis meses de calvário e dois anos de afastamento das pistas.

"(...) Não morri por milagre. Despistei-me, dei duas voltas e fui parar à mata. O carro embateu numa árvore, partiu-se em dois e eu aterrei numa zona de silvas, que me ampararam o golpe. Saí todo picado, com 17/18 fracturas. Estive seis meses num hospital em Rouen, onde uma enfermeira salvou-me da morte com embolia pulmonar. Ela estava sempre ao meu lado e tinha a injecção pronta. Salvou-me a vida às duas e quatro da manhã."

Quando volta a competir, em 1967, têm já 33 anos e muitos duvidam da sua capacidade de competir. Como é óbvio, os monolugares estavam colocados de parte, e ele correu num Porsche Carrera 6 numa das corridas mais importantes de então: o Circuito de Montes Claros, numa versão do Circuito de Monsanto, que o viu estrear oito anos antes na Formula 1. Os circuitos permanentes ainda eram uma ilusão em Portugal - Estoril só apareceria em 1972 - mas "Nicha" aproveitou a oportunidade para testar a ele mesmo as suas capacidades de condução. Venceu... e convenceu.

Amanhã, conto mais coisas sobre a rica vida e carreira de "Nicha" Cabral.

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