Na semana do Grande Prémio de França, vou um pouquinho mais atrás na história para falar de uma corrida excepcional, vinda de um tempo pioneiro, e que mostrou aqui a rivalidade entre as duas maiores potências do seu tempo: França e Alemanha. E paradoxalmente, esta foi a corrida mais épica e a última na Europa em seis anos, pois poucas semanas depois, começava a I Guerra Mundial…
Isto começa algum tempos antes. Em 1906, o Automobile Club de France decide criar o primeiro “Grand Prix” do mundo, na cidade de Le Mans. Essa corrida foi ganha pelo Renault do húngaro naturalizado francês Frenc Szisz (1873-1944), e o sucesso do Grand Prix fez com que existissem mais edições. Porém, em 1908, no circuito de Dieppe, a França entrou em choque quando a Mercedes ganhou a corrida. Ver a “sua” corrida ser ganha contra o inimigo alemão, numa altura em que a recuperação da Alsácia e da Lorena era um desígnio nacional, foi uma humilhação no orgulho nacional. E a partir de então, os construtores franceses queriam evitar que tal coisa voltasse a acontecer.
Em 1914, a Peugeot era rei e senhor nas pistas mundiais. No ano anterior, tinham dominado a competição, tendo até sido o primeiro construtor estrangeiro a ganhar as 500 Milhas de Indianápolis, através do francês Jules Goux. Para além dele, a equipa tinha outro francês: Georges Boillot. Os carros eram desenhados por uma equipa que incluía um Ettore Bugatti, no início da sua carreira. Em Maio, tinham ido de novo a Indianápolis, para tentar repetir a proeza, e conseguiram, batendo a concorrência americana. Mas o vencedor não foi Jules Goux, mas sim outro francês, René Thomas, num Peugeot não oficial…
Nesse ano, o Automobile Club de France procurava um lugar para realizar o seu Grande Prémio. Das dezenas de cidades candidatas, escolheu a de Lyon, pois estes concederam mais de 10 mil libras de subsídios, uma fortuna na época. A data da corrida: 4 de Julho.
Houve 36 inscrições, de várias equipas francesas e estrangeiras: Opel, Sumbeam, Fiat, Delage, Schneider, Vauxhall… A Peugeot ia correr com Boillot, Goux e Victor Rigal. Mas o maior perigo vinha da alemã Mercedes. Investiram tudo nesta corrida, decididos a repetir o feito de seis anos antes. Inscreveram cinco carros, quatro oficiais, para Max Sailer, Christian Lautenschlager, Louis Wagner e Otto Salzer, e um para Theodore Pilette, um piloto belga, que era o representante da marca no seu país. Durante a Primavera visitaram em detalhe o circuito, montaram o seu quartel-general na cidade e usaram profusamente os dois dias de treinos para afinar a melhor estratégia possível. Chegou-se até a noticiar que a Mercedes colocou este aviso na ordem do dia: “Por razões de propaganda, a Mercedes decidiu ganhar este ano o Grande Prémio”
Como já foi dito, o “Grand Prix” estava marcado para o dia 4 de Julho. Mas alguns dias antes, a 28 de Junho, a politica entra em cena: o Arquiduque herdeiro Francisco Fernando é morto na cidade de Sarajevo pelo anarquista sérvio Gavrilo Princip. A Europa estava à beira da guerra e todos sabiam que caso o sistema de alianças então vigente entrasse em vigor, milhões de pessoas pegariam em armas numa questão de dias… Agora, já não era um corrida. Era a primeira batalha de uma futura guerra europeia!
Nesse dia, mas de 200 mil espectadores assistiram à partida da corrida, às oito da manhã. O primeiro a passar foi Boillot, mas quando se somaram os tempos, verificou-se que o líder era Max Sailer, da Mercedes. A táctica começava a funcionar: Iam lançar um Mercedes para a frente, como isco para que os Peugeot pudessem morder, já que eles iriam jogar com o orgulho nacional. E morderam!
O carro de Sailer durou apenas cinco voltas, até que os rolamentos da cambota griparam. Goux e Boillot ficaram então na frente, mas os outros Mercedes, de Lautenschlager e de Wagner, que estavam melhor conservados, ficavam perto dos Peugeot. Na sexta volta, Boillot estava na frente, mas o segundo, Lautenschlager, estava a menos de um minuto. Jules Goux era terceiro, mas Otto Saltzer e Louis Wagner não estavam atrás.
Nas 11 voltas seguintes, Georges Boillot fez a corrida da sua vida. Tinha que ser: a honra da França estava em jogo. Nessa altura, a Mercedes due ordem a Lautenschlager para pressioná-lo. A diferença caiu para 23 segundos, no início da última volta.
Na altura, as pistas eram enormes, não eram as pistinhas que vemos agora, de três ou quatro mil metros. Estamos a falar de pistas com dezenas de quilómetros de extensão, com curvas apertadas e rectas longas e perigosas. Voltando à corrida: Boillot tinha levado o carro ao limite, e para além dele. Toda a França torcia por ele: era ele ou os alemães, e todos queriam que 1908 não se repetisse. Mas isso não aconteceu: a 23 quilómetros da meta, uma das válvulas do motor Peugeot partiu-se e um Boillot inconsolável teve que abandonar. A estratégia da Mercedes resultou plenamente: os carros ficaram com os três primeiros lugares. Jules Goux foi o melhor francês, no quarto lugar.
Os vencedores foram recebidos com um silêncio gelado no pódio da corrida, e voltaram para Estugarda para serem recebidos como heróis. Quatro semanas depois, a guerra começava, e as corridas de automóveis ficaram suspensas até 1919.
Quanto aos participantes desta grandiosa corrida, tiveram sortes diferentes: Georges Boillot tornou-se um ás da aviação e foi abatido em Verdun, dois anos mais tarde. Hoje em dia, não há cidade ou vila francesa que não tenha uma "Rue Georges Boillot". Jules Goux retomou a carreira depois da guerra. Retirou-se em 1926 e morreu em 1965, aos 79 anos, o que é considerado muito bom, dado que muitos dos seus concorrentes morreram cedo na vida, em pista…
Do lado alemão, o vencedor, Christian Lautenschlager, também voltou a correr depois da I Guerra, chegando até a competir em Indianápolis. Trabalhou para a marca até à reforma e morreu em 1954, aos 76 anos. Max Sailer também trabalhou para a Mercedes, tornando-se no chefe do departamento desportivo da marca nos anos 30, altura das “Flechas de Prata”. Morreu em 1964, aos 81 anos.
Para terminar, conto-vos a história de um dos Mercedes que esteve na corrida de Lyon: poucas semanas depois, estava em exposição em Londres. Contudo, a 4 de Agosto, a Inglaterra entra em guerra com a Alemanha e o carro foi apreendido pelas autoridades. Deveria ter ficado em Inglaterra até o final da guerra, e depois seria devolvido à Alemanha. Isso é verdade, mas… a devolução aconteceu em 1950, depois da II Guerra Mundial! Hoje em dia, é um dos orgulhos do museu da Mercedes, em Estugarda, e participa regularmente em eventos históricos.
2 comentários:
Speeder, muito obrigado pelo apoio. A visita já está retribuída, mas não pense que eu não vou voltar por aqui, ok? Grande abraço!
Speeder,
tô passando rápido só pra dizer que o site deve sair semana que vem. Se já tiver decidido o nome da coluna, passa pra mim ou pro Groo que a gente vai ajeitando. Por enquanto, só o nome; o texto a gente vê no fim de semana.
Abs
Enviar um comentário