quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

O piloto do dia - Gilles Villeneuve (4ª e última parte)

(continuação do dia anterior)

Em 1981, a Ferrari estreava um chassis novo, com o novo motor V6 turbo, com compressores KKK, mais forte, mas pouco fiável. Para piorar as coisas o chassis estava mal desenhado, e a equipa não era tão competitiva como se esperava. Em suma: era um chaço com motor. Mas Gilles Villeneuve era lutador e persistente, e sabia que dali podia sugar o máximo do seu carro. Nisso, ele era bom. E foi nesta altura que ficou com o número que iria ser sempre associado: 27. Estranho, quando estatisticamente é sabido que correu mais com o numero 12…

Não chegou ao fim nas três primeiras corridas, em Long Beach, Jacarépaguá e Buenos Aires. Mas quando voltou a Imola, fez a pole-position e a volta mais rápida, até que ele se atrasou devido aos maus pneus Michelin naquele dia, e terminou a corrida no sétimo posto, fora dos pontos. Foi quarto em Zolder, depois de uma intensa batalha com os Lotus de Nigel Mansell e Elio de Angelis. Só conseguiu superar o italiano, pois foi aqui que o “brutânico” conseguiu o seu primeiro pódio da sua carreira.

A prova seguinte seria no Mónaco, onde Villeneuve se esmerou e levou o seu carro para o segundo posto da grelha, atrás de Nelson Piquet, no seu Brabham. O canadiano sempre se deu bem nas ruas do Principado, e na corrida, aproveitou bem a desistência do piloto da Brabham e os problemas de Jones no sistema de alimentação para o ultrapassar perto do final da corrida e dar à Scuderia a primeira vitória em ano e meio.

A prova seguinte era no circuito espanhol de Jarama. Nos treinos, Villeneuve foi apenas o sétimo da grelha, ficando atrás do “poleman” Jacques Laffite, dos Williams de Carlos Reutmann e Alan Jones, o McLaren de John Watson, o Alfa Romeo de Bruno Giacomelli e o Renault de Alain Prost. Na partida, Laffite larga mal e Villeneuve passa para o terceiro posto após a primeira curva. No final da primeira volta, Villeneuve aproveita a potência do seu carro para passar Reutmann e ficar atrás de Jones. Villeneuve nem pressionou muito o australiano, mas na volta 14, Jones despista-se e cede a liderança ao canadiano.

Com isto, Villeneuve tentou gerir a liderança. Mas Reutmann tentava pressionar o canadiano, e o duelo durou o resto da corrida. Primeiro com o argentino, e depois, quando este começou a ter problemas com a caixa de velocidades, cedeu o lugar a Laffite. Atrás dele estavam o McLaren de Watson e o Lotus de Elio de Angelis, e todos, em fila indiana, tentando superar o canadiano, que aproveitava todas as curvas do sinuoso circuito para se manter na liderança.

A disputa foi épica, pois todos sabiam que aquele não era o melhor carro do pelotão. Todos viam que aquilo era mais mérito do piloto e do potente motor Turbo que ele continha. Mas Villeneuve, ajudado também pela estreiteza do circuito, aguentou as investidas de Laffite até à meta. E o canadiano venceu a sua segunda corrida consecutiva, mas por mérito próprio do que pelo chassis.

No final, todos diziam, entre o resignado e o incrédulo, de mais um feito de Villeneuve e do seu Ferrari numero 27, nas curvas e contracurvas do circuito espanhol:

Carlos Reutemann: “Algumas vezes Gilles saiu da pista com as 4 rodas, não sei como, mas ele conseguia voltar.”

Jacques Laffite: “Eu sei que nenhum ser humano consegue fazer milagres. Mas Gilles algumas vezes faz-me duvidar disso”.

Alan Jones: “Villeneuve? O importante acerca dele é que alem de ser agressivo e duro é também sensível e responsável. Ele pensa. Pouquíssimos pilotos teriam ganho com o Ferrari em Espanha independentemente da vantagem de mais cavalos ou não. Ele controla o carro e a situação e não se pode dizer isso da maioria dos outros pilotos pois na metade do tempo é o carro que os leva para dar uma volta.”

Gordon Murray: “Honestamente penso que foi a melhor corrida que eu já vi de qualquer piloto. Aquele chassis é horrível, pior por muito do que todos os outros. A sua condução foi simplesmente irreal. Conseguir dar 80 voltas naquele carro sem cometer um erro é um grande feito. Faze-lo quando se está na liderança e sob constante pressão é inacreditável.”

Enzo Ferrari: “Gilles Villeneuve no domingo fez-me viver outra vez a lenda de Tazio Nuvolari.”

Villeneuve respondeu: “Também fiquei embaraçado! (risos) De facto não consegui perceber porque é que não conseguiam me passar, afinal de contas três deles estavam á minha frente no grid! O Ligier de Laffite era pelo menos 2 segundos por volta mais rápido que o meu carro. Para mim foi mesmo muito duro, tive que correr muitos riscos mas nunca desisti. Foi a melhor corrida da minha vida.”

O resto da temporada é sofrido. Nos circuitos mais rápidos, Villeneuve sofre com o chassis, e muitas das vezes não termina, ora devido a despiste, como em Silverstone e Zandvoort, ora por problemas mecânicos, como em Monza, quando o motor simplesmente rebenta.

No Canadá, a sua prova natal, Villeneuve tem mais uma demonstração da sua capacidade em situações adversas. Durante a corrida, disputada à chuva, Villeneuve danificou a sua asa dianteira, só que esta não se descolava, causando uma situação potencialmente perigosa. Para piorar as coisas, Villeneuve não ia às boxes resolver o problema. A situação esteve quase ao ponto do director de corrida estar quase a aplicar uma bandeira preta no canadiano, mas quando o Ferrari está perto da curva do Casino, esta solta-se, permitindo a ele continuar a correr, dado que o efeito-solo e o tempo que se fazia sentir na altura era mais do que suficiente para poder continuar sem problemas. No final, cortou a meta na terceira posição, o seu terceiro pódio do ano. Em Las Vegas, última prova do ano, Villeneuve errou o seu lugar na grelha, e foi desclassificado pelos comissários. No final de 1981, Villeneuve terminou a época no sétimo posto, com 21 pontos. Um feito para um carro que não tinha mais do que um potente motor e um piloto muito hábil…

Harvey Postlethwaithe, o projectista do carro, referiu sobre esse chassis e a época de 1981: “Aquele carro tinha um quarto de ‘downforce’ que tinha Williams e Brabham. Tinha vantagem em termos de motor, é claro, sobre os Cosworth, mas também tinha problemas em termos de resposta, pois não era imediato. Em suma, em termos de habilidade, Villeneuve estava num plano diferente em relação aos outros condutores. Para ganhar aquelas duas corridas, Mónaco e Jarama, foi algo fora deste mundo, pois sabia quão mau era aquele chassis”.

Sendo assim, Postletwaithe decidiu fazer um chassis melhor para 1982, e saiu-se bem. O modelo 126C2 era bastante melhor, e parecia que era adequado para os pilotos. Mas isso também tinha criado algo no seio da equipa. Sabendo que o chassis era bom, o outro piloto, Didier Pironi, achou que poderia superar Villeneuve com as mesmas armas, caso tivesse a oportunidade.

A temporada de 1982 começava na África do Sul, com uma inesperada greve de pilotos, causada devido a uma clausula relativa às Super-Licenças e à possibilidade de os pilotos poderem correr por outra equipa durante a temporada, algo que não era permitido pelo regulamento que lhes era distribuído. Niki Lauda, regressado à Formula 1 alertou para a situação ao presidente da GPDA, que nessa altura era… Pironi. Depois de dia e meio de tensas negociações, e com a corrida em risco, ambos os pilotos da Ferrari estavam nas bocas do mundo. Um a negociar… e o outro a entreter as tropas, ao lado de Elio de Angelis, outro exímio pianista. No final, tudo ficou resolvido a favor dos pilotos e o fim de semana prosseguiu. Villeneuve foi terceiro nos treinos, mas a corrida acabou cedo devido a um motor rebentado.

No Brasil, o canadiano deu-se bem com o carro e chegou a liderar a corrida até desistir por despiste, quando estava a ser pressionado por Piquet.

Na prova seguinte, em Long Beach, a politica tinha voltado a imiscuir-se na competição. A desclassificação de Piquet e do finlandês Keke Rosberg, devido ao facto de terem lastros de água nos seus carros, de forma a ficarem mais leves na corrida, expediente usado para tentarem acompanhar os carros com motor Turbo, levou à revolta de algumas equipas. A Ferrari usou isso, ao colocar no carro de Villeneuve duas metades de uma asa frontal na sua asa traseira, ficando um pouco maiores do que o regulamento permitia. Na corrida, Villeneuve lutou contra Rosberg, um duelo que terminou com o despiste do piloto canadiano, mas prosseguiu em prova, acabando na terceira posição. Mas os comissários desclassificaram o carro do canadiano, e o caldo entornou-se, fazendo com que as equipas inglesas boicotassem a prova seguinte, o GP de San Marino, em Imola.

Nessa corrida, somente 14 carros alinharam na corrida: Renault, Ferrari, Alfa Romeo, ATS, Tyrrell, Osella e Toleman. Na prova, Ferrari e Renault dominaram, mas a meio da prova, os dois carros franceses estavam KO, logo, a marca do Cavalino simplesmente tinha que gerir a corrida.

Mas aí, Pironi aproveitou a situação para passar à frente da corrida, algo que espantou Villeneuve. Havia ordens da equipa para abrandarem o ritmo dos seus carros, no sentido de pouparem combustível e chegarem ao final da corrida. Contudo, aconteceu o contrário, e ambos partiram para uma batalha sem tréguas. Quando Villeneuve passava para a frente, Pironi respondia e atacava a liderança, e foi assim até à bandeira de xadrez. Para os espectadores presentes, foi um senhor duelo, mas para a equipa, foi uma dor de cabeça desnecessária. Apesar de não haver ordens de equipa no sentido de se respeitar uma hierarquia Villeneuve-Pironi, pensava-se que isso não seria necessário, bastava apenas um acordo tácito. Só que o francês não fez caso disso, e quis, ao ganhar, marcar posição na equipa. Conseguiu, e criou um mau ambiente na equipa, e consequentemente, apressou o fim.

John Hogan, o homem da Marlboro na Europa, e um dos seus amigos, disse anos depois sobre esse incidente: “Acho que nenhum dos dois queria ‘deitar fora’ uma corrida como aquela. Simplesmente, Villeneuve ficou surpreendido pelo facto de Pironi o ter ultrapassado e o ter superado em pista. Para ele, isso deve ter sido um choque”, afirmou.

Para Villeneuve, a atitude de Pironi foi encarada como “traição” e disse isso com todas as letras na entrevista que deu a Nigel Roebuck, cerca de uma semana depois à revista inglesa Autosport, onde afirmou a frase fatal: “Pironi será a partir de hoje o meu adversário. Nunca mais falarei para ele no resto da minha vida”.

Depois do desenlace fatal, Alain Prost, que também era seu amigo pessoal, afirmou que “durante aqueles 15 dias, a maior obsessão de Villeneuve chamava-se Didier Pironi”. Nessa altura, corriam rumores de que Villeneuve pensava terminar contrato com a Ferrari antes do prazo, e Frank Williams disse depois que teve conversas em relação a uma hipótese de pilotar pela marca na temporada de 1983. E foi assim, naquele ambiente de cortar a faca, que a Formula 1 chegou à quinta prova do campeonato, no circuito belga de Zolder.

Villeneuve queria mostrar quer a ele, quer ao resto do pelotão da Formula 1, que era o mais rápido. Apesar de não aparecerem na frente da tabela de tempos, os Ferrari eram rápidos, e a meio da sessão de Sábado, Pironi estava na frente de Villeneuve, embora a diferença fosse a mínima. Mesmo assim, o canadiano saiu uma última vez para tentar melhorar o seu tempo, e sobretudo, ultrapassar o seu novo “nemesis”.

O tempo não tinha sido grande coisa, e voltava para as boxes, mas não numa velocidade habitual de descontracção, bem pelo contrário. Ia a mais de 225 km/hora quando viu na frente um bem mais lento March do veterano alemão Jochen Mass, que se aproximava da curva Trelamenbocht. Julgando que ia em velocidade de qualificação, o alemão encosta à sua esquerda para o deixar passar, mas o canadiano não foi a tempo de corrigir, e o embate foi inevitável. O carro catapultou, caiu de nariz, quebrou a parte da frente, o piloto voou do seu carro e caiu nas redes de protecção. Estava vivo, mas não tinha o capacete colocado e tinha o pescoço fatalmente partido.

Derek Warwick e John Watson foram os primeiros a socorrer o piloto, e os primeiros socorros chegaram menos de um minuto depois. Com pulso, os primeiros socorros atenderam-no rapidamente e foi levado para o hospital. Contudo, apesar de respirar, estava já em estado de morte cerebral e na noite de 8 de Maio de 1982, a sua mulher Joanne concordou com os médicos em desligar o suporte básico de vida. Tinha 32 anos.

A sua carreira na Formula 1: 67 Grandes Prémios em seis temporadas (1977-82), seis vitórias, treze pódios, duas pole-positions e oito voltas mais rápidas, 107 pontos no total, dos quais 101 são oficiais. Vice-campeão do mundo em 1979.

O homem foi-se, mas o legado é forte. O seu amigo Jody Scheckter disse-o no seu funeral: “Vou sentir a falta de Gilles por duas razões: primeiro, por ser o piloto mais rápido da história do automobilismo. Segundo, foi o homem mais genuíno que conheci. Mas ele não desapareceu. A memória daquilo que fez irá permanecer”.

E assim aconteceu. O circuito de Montreal foi batizado com o seu nome, existem duas estátuas dele, uma em Fiorano, a outra em Berthierville, a sua terra natal, e não faltam curvas com o seu nome em alguns dos circuitos espalhados no mundo inteiro. As mais famosas estão em Imola e em Zolder, curiosamente, o lugar onde sofreu os seus piores acidentes da carreira.

Os fãs continuam a honrar a memória deste canadiano, mesmo que muitos deles nunca tenham visto correr. Há uma grande procura por “memorabilia” referente ao piloto, e mesmo o numero que usou somente durante uma temporada e meia, o 27, é associado a ele. Quando o seu filho Jacques começou a correr na CART, pela Green, o seu numero em 1995 foi o 27, e foi com esse numero que venceu as 500 Milhas de Indianápolis e o campeonato desse ano, antes de rumar para a Formula 1 e para o título mundial de 1997, algo que o seu pai provavelmente teria gostado de ganhar. Nesse ano, os correios canadianos colocaram uma série de selos em sua honra, apenas mais uma das inúmeras homenagens que foi alvo.

Fontes:

http://www.museegillesvilleneuve.com/
http://en.wikipedia.org/wiki/Gilles_Villeneuve
http://www.grandprix.com/gpe/drv-vilgil.html
http://en.wikipedia.org/wiki/1981_Spanish_Grand_Prix
http://www.almanaquedaformula1.com.br/2010/01/gilles-villeneuve-60-anos-parte-1.html
http://www.almanaquedaformula1.com.br/2010/01/gilles-villeneuve-60-anos-parte-2.html
http://blogdoribeiro.blogspot.com/2009/03/por-que-idolatrar-gilles-villeneuve.html
http://blog.f1girlsonline.com/2007/03/12/ele-foi-o-demonio-mais-louco-que-conheci-na-f1-niki-lauda/
http://continental-circus.blogspot.com/2007/05/gilles-villeneuve-25-anos-depois-os.html
http://continental-circus.blogspot.com/2008/05/vida-de-gilles-villeneuve-1-parte-o.html
http://continental-circus.blogspot.com/2008/05/vida-de-gilles-villeneuve-2-parte.html
http://continental-circus.blogspot.com/2008/05/vida-de-gilles-villeneuve-3-parte.html
http://continental-circus.blogspot.com/2008/05/vida-de-gilles-villeneuve-7-parte-poca.html
http://continental-circus.blogspot.com/2009/10/gp-memoria-estados-unidos-1979.html
http://continental-circus.blogspot.com/2008/05/vida-de-gilles-villeneuve-parte-9-poca.html

3 comentários:

Unknown disse...

o accidente de Gilles é uma das primeiras imagens que tenho da F1, asistida em diferido, como a maior parte das corridas que conseguia assistir até 1985. tinha anos e percebí a violência implícita num esporte que até então era pra mim pouco mais do que o futebol. foi paixão na hora...

quando os gestores na F1 procuram abafar cenas como a de Hamilton fazendo zerinhos pra comemorar a vitória, é a Gilles que eles matam mais uma vez. o arquetipo do piloto espontâneo, agresivo, e genial; devia de ter como maior homenagem a procura destas caracteristicas na F1 atual

Felipe Playmobil disse...

- Grande Gilles.

Fleetmaster disse...

Viva Gilles !
FORZA FERRARI!