(continuação do capítulo anterior)
Contudo, como Harvey Postlethwaithe bem apontou, Gilles tinha indubitavelmente uma maneira de sair airosamente de uma situação potencialmente perigosa. O que é que me disse na tarde em que o entrevistei devidamente, em Zolder, em 1978? 'Não tenho qualquer medo de bater - abasolutamente nenhum. OK, numa curva de alta velocidade, se vir uma rede protetora na pista, não quero bater nela - não assim tão maluco - e se sentir que tenho uma roda fora do lugar, levanto um pouco o pé como toda a gente. Mas se fora algo como, vamos supor, o final da qualificação, e queres fazer a pole-position, pode ser que comprimas um pouco essa preocupação. Creio que toda a gente deve fazer isso...'
Quinze dias antes, no Mónaco, Villeneuve tinha tido um acidente à saída do túnel quando o seu pneu furou, e eu fiquei impressionado com a sua reação. Não teve medo de todo? 'Eu não - o carro, sim. Quando senti que tinha perdido o controle, disse para mim mesmo 'Diabos, vai ser um belo serviço por aqui!' Fiz um esgar antes de sentir o impacto, mas honestamente, naquele instante antes de bater, pensai que era mais uma corrida que seria desperdiçada, que não iria chegar ao fim. Nunca pensei que iria magoar-me - isso parece ser impossivel para mim - mas sei que posso magoar o carro, e é isso que eu não quero que aconteça...'
Mesmo naqueles tempos, trinta e tal anos atrás, tinha consciência de que era uma entrevista fora do vulgar. Por volta de 1978, tinha entrevistado muitos pilotos e alguns deles - notavelmente David Purley - tinham uma atitude absolutamente louca em relação à segurança, inviável nos dias de hoje. Villeneuve era ainda outra coisa para além disso, e a impressão que tinha ficado era que a sua atitude não tinha nada de louco, pelo menos da maneira como falava. A sua voz era calma e rejeitava firmemente as sugestões de que era 'demasiado bravo'.
'Tenho uma atitude diferente dos outros' - afirmava Gilles - 'talvez seja porque nunca fizeram snowmobile, como fiz. E era muito bom nessa modalidade, é um facto...'. De facto era verdade, tendo sido até campeão do mundo por uma vez. 'Eles eram velozes naquelas coisas, e a cada inverno irias ter sempre três ou quatro grandes acidentes, onde eras projetado a 160 km/hora. Talvez os pilotos de motociclismo tenham a mesma atitude, não sei...'
Houve uma ocasião em que admitiu que teve medo, um medo muito especifico, na realidade. No Grande Prémio de Itália de 1980 (corrido em Imola), um dos seus pneus rebentou e se despistou a alta velocidade na curva antes da Tosa. Quando o vi, depois disso, admitiu que estava com uma forte dor de cabeça, e os médicos tinham-lhe dito para que não andasse de helicóptero nos dias seguintes, mas de resto, estava bem.
'Eu sabia o que tinha acontecido ainda antes de que o carro começou a entrar em pião, porque ouvi o ruido do pneu a romper-se. Eu sabia onde estava, onde estava o muro e pensei: 'Esta vai doer...'. Depois de bater, ficou tudo escuro, e depois ricocheteou para o meio da pista - conseguia ouvir os carros a passarem ao meu lado - mas por mais de 30 segundos, não conseguia ver, e por causa disso fiquei com muito medo...'
'Agora fiquei com certezas sobre a maneira como o carro aguentou o impacto. Estava nervoso, pois fez me lembrar o inicio da carreira, onde não sabia como iria me comportar quando batesse no guard-rail. Agora já sei, mas da primeira vez que isso aconteceu foi numa prova de Formula Atlantic, foi um acidente bem feio, onde parti uma das pernas. Mas agora já sabia como seria quando batesse num guard-rail, e isso não mais me incomodou. Por outro lado, tenho mais medo de cair de uma janela, porque é algo que nunca me aconteceu. Mas hoje fiquei com medo porque perdi a minha vista. Parece que todos nós temos medo do desconhecido...'
Quando trabalhas num meio como a Formula 1, aprendes logo depressa que para admirares o piloto, não precisas de admirar a pessoa, mas Gilles era daqueles poucos que eu quis ter como amigo, mesmo que ele não estivesse ligado às corridas. Como Harvey Postlethwaithe disse um dia: 'Era a personagem mais apolitica e mais honesta que jamais conheci'
Lembro-me de ter perguntado sobre o que pensava do Ferrari 208 GTB Turbo, que tinha a mesma performance do 308, mas como tinha um motor mais pequeno, pois assim pagava uma taxa mais leve. Supreendentemente, Gilles afirmou que não queria falar sobre isso. Eu perguntei-lhe o porquê. 'Bom... porque simplesmente não gosto!' respondeu. Depois justificou-se: 'Qual é a ideia de fazer um motor de dois litros, e depois colocar-lhe um turbocompressor? Se tivessem feito isso no motor de 3 litros, aí em compreenderia...'
Muitas vezes via os relações públicas do seu tempo a aguentarem Gilles com um sorriso. Fazer falar a coisa de forma politicamente correta... era uma tarefa impossivel. Se alguma vez desenvolveu algum tempo de cinísmo saudável sobre os porquês da Formula 1 - e de algumas pessoas dentro dele - era sem purídos: para Gilles, dizendo a coisa certa era dizendo o que pensava e Niki Lauda - outro piloto que sempre lutou contra o conceito de RP - era um dos muitos que o admiravam por isso.
Houve um tempo em que a Formula 1 era um negócio bem mais informal do que é agora. Não havia conferências de imprensa, nem 'press releases', e logo, havia muito mais contactos diretos entre pilotos e jornalistas, onde às vezes aconteciam algumas amizades. Naquele dia, em Zolder, perguntei-lhe se podia gravar uma entrevista, disse que sim, logo de imediato. Quando a acabei, ele escreveu a minha morada no meu caderno, e também deu o seu numero de telefone.
Ele era diferente noutras maneiras. Com o passar dos anos, eu notei que - com algumas excepções, claro - os pilotos de Grande Prémio voluntariavam-se para pagar coisas que os empregados bancários nos oferecem para que eles conseguissem algum bónus. Um dia, liguei para Gilles, e após alguns minutos, ele me perguntou onde estava. Em casa, disse eu. 'Bom, desliga o telefone que depois ligo-te de volta. És um jornalista, eu sou um piloto, e tu és mal pago, enquanto que eu sou demasiadamente bem pago!'
(continua amanhã)
1 comentário:
Nunca é demais ler acerca do Gilles... Obrigado.
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