sábado, 18 de julho de 2015

Quando o contador mortal voltou ao zero

Para uma Formula 1 que leva a segurança dos seus pilotos até a níveis incríveis, não se ter precavido sobre esta possível tempestade raia a incompreensão. Rezar por um "milagre" ou uma abertura no tempo para a realização do Grande Prémio raia a estupidez. Milhões de pessoas um pouco no mundo inteiro acordarão mais cedo - ou nem sequer irão dormir - para se virem frustrados em ver uma grelha de partida pronta para correr num circuito que poderá estar debaixo de rios. E o mais provável é que os carros andem duas, cinco ou dez voltas debaixo do Safety Car, recolher às boxes e dar metade dos pontos a toda a gente. (...)

Em suma, daqui a umas horas poderemos estar a assistir a uma farsa. Ou se preferirem, a mais um episódio de "Formula Zero", semelhante ao que aconteceu no GP dos Estados Unidos de 2005, mas de forma diferente. (...)

4 de outubro de 2014, "A Caminho da Formula Zero"

Neste momento, Bianchi está a ser levado de ambulância para o Hospital Universitário de Mie, em vez de ser de helicóptero. Ao contrário que se pode pensar, não é por causa do mau tempo, mas sim têm a ver com "razões médicas". E isso pode ser explicado de forma simples: pressão intercranial. Isso significa que o neto de Mauro Bianchi e sobrinho-neto de Lucien Bianchi poderá ter sofrido lesões graves na cabeça.

As informações são ainda escassas, mas infelizmente, o automobilismo não é como o jornalismo, onde "no news is good news". É exatamente ao contrário. E a minha experiência com exemplos como Henry Surtees ou Dan Wheldon demonstra esse padrão.

Não quero tirar conclusões precipitadas, mas só me apetece dizer que "tudo isto poderia ter sido evitado". Falei ontem acerca do risco de irmos assistir a algo que chamei de "Formula Zero", dizendo que teria sido sensato antecipar a corrida para ontem à tarde ou para a manhã de domingo teria sido melhor, mas parece que a razão para que não tivesse acontecido foi por causa da irredutibilidade da organização nipónica, e nem tanto porque a FIA ou Bernie quis. Segundo conta o Adam Cooper, a FIA até sugeriu por duas vezes o adiantamento, mas recusaram.

Tenho a sensação de que tudo isto poderia ser evitado. E tinha a sensação que esta corrida iria entrar na história da Formula 1 pelos piores motivos. Mas não por isto. (...)

5 de outubro de 2014, "Da Farsa à Tragédia"

Foram 21 anos, dois meses e dezassete dias. É uma vida, sejamos honestos. E ao longo desse tempo, assistimos a um pouco de tudo: carambolas espectaculares, carros enfiados dentro de muros de pneus ou de cimento (Robert Kubica, em 2007, no Canadá), voos de pilotos depois de tocarem em carros de outros (Mark Webber, em Valência, em 2011 ou 2012, tou a fazer isto de cabeça), traseiras de carros enfiados na frente de outros, (Takuma SatoNick Heidfeld, em 2002, em Zeltweg)... e tudo isto com pilotos a sacudirem o pó e pouco mais. Os acidentes mais graves, que eu me recorde, foram os de Michael Schumacher, em 1999, em Silverstone, a do seu irmão, cinco anos mais tarde, em Indianápolis, e de Felipe Massa, em 2009, por causa de uma peça caída do carro de Rubens Barrichello

Durante algum tempo, alimentei para mim mesmo a ilusão que depois de Ayrton Senna, nunca mais. Pelo menos nesta geração. Que as mortes tinham acabado por ali e a FIA tinha feito um bom trabalho em garantir a segurança dos pilotos, dos espectadores, dos comissários. Que tínhamos escapatórias enormes, de asfalto, alta tecnologia, chassis de fibra de carbono... tudo. Tinham coberto tudo, e só em circunstâncias excepcionais é que os acidentes teriam consequências mais graves.

Mas no meio disto tudo, noutras categorias, aconteciam acidentes fatais: Henry Surtees, na Formula 2, em 2009 (uma semana antes de Felipe Massa) e Dan Wheldon, na oval de Las Vegas, dois anos depois, na prova final da IndyCar. Aí comecei a preocupar-me, especialmente quando se descobriu da vulnerabilidade dos carros a objetos, sejam eles leves ou pesados, e os capacetes não aguentariam esse impacto. Somos humanos, não nos lembramos de tudo, os erros permitem nos corrigir e melhorar as coisas.

Mas sempre tive esta sensação de que tudo isto poderia ter sido evitável. O tempo, as corridas, a organização - confesso ter ficado chocado com um trator por ali, com a fama da organização japonesa. E como fazem no Mónaco? - sempre fiquei com a sensação de que era uma tempestade perfeita, onde os erros seriam mostrados em todo o seu "esplendor".

Sempre achei que era uma morte ao retardador, especialmente após o diagnóstico de Lesão Axonal Difusa. Creio que isso foi dito logo no dia do acidente. Especialmente quando li profissionais intocáveis como o Dr. Gary Hartstein, que avisou logo que a situação era mesmo grave. E isso consciencializou-me que durassem os minutos, horas, dias, semanas, meses... até chegarmos ao inevitável. Era inevitável, ele iria morrer. Então quando o pai, Philippe, nos dizia como ia o filho, quando falava de vez em quando a um jornalista em Nice, ouvindo o desespero que saía da boca dele, das suas angustias por ver o seu filho sem reagir, mesmo sem aparelhos a ajudá-lo a respirar.

Aliás, há três dias, dizia isso mesmo:  “Esta situação é uma tortura diária", começou por dizer numa entrevista à France-Info. "Às vezes, quase enlouquecemos, porque é bem pior do que se o Jules já tivesse morrido. Nos primeiros três meses depois do acidente, ainda tivemos a esperança que a situação melhorasse, mas agora sentimos que não podemos fazer mais nada”. Não pensávamos que o fim estava tão próximo, mas de uma certa maneira, a família vive uma espécie de alivio.

E agora, dizemos o quê, lamentamos o quê?

Deixem-me contar uma coisa interessante, com 21 anos, dois meses e 19 dias. Vou voltar à tarde do dia 30 de abril de 1994, quando Roland Ratzenberger perdeu a sua asa dianteira e bateu a 330 km/hora no muto da Curva Villeneuve, causando lesões fatais na base do crânio. Os médicos fizeram manobras de ressuscitação ao piloto austriaco durante uma hora, sem sucesso, mas declararam a sua morte no Hospital Maggiore, em Bolonha. Isto quer dizer que ele estava vivo quando o tiraram do circuito. E isso é importante, porque na legislação italiana, qualquer morte num evento desportivo, este é imediatamente cancelado. E como a morte foi declarado noutro lado e não no local, tal não aconteceu. Conhecem o resto da história, não vou me alongar.

O que quero trazer à baila é a responsabilidade da FIA e de Bernie Ecclestone nestes casos. Ambos adoram jogar nas ambiguidades da lei para escapar às suas responsabilidades. Como sabem, após o acidente, este abriu um inquérito, e chegou à conclusão de que o culpado tinha sido o piloto, por não ter abrandado numa zona de bandeiras amarelas. As bandeiras servem para o piloto levantar o pé, não para parar, e a telemetria demonstrou que ele levantou o pé. Infelizmente, não o suficiente. Mas como é a FIA que dita as regras, ela pode dizer que as atitudes eram dele, logo, é o culpado. E qual é a atitude da FIA e da organização que fizeram com que uma corrida arrancasse na hora prevista, mesmo com um furacão a caminho e acabar com quase a lusco-fusco, disfarçado para as nossas casas apenas por causa das câmaras de alta definição?

"Acidentes acontecem"? "O espectáculo têm de continuar"?

Quando falei no perigo da farsa, falava da ideia de que as coisas tem de acontecer, custe o que custar. Por causa do tempo de satélite, dos contratos, etc. Mas falamos de vidas em jogo, que aceitam um certo grau de risco, desde que joguem em segurança. Nenhum piloto tem o desejo de morrer, quer fazer o que mais gosta e voltar a casa são e salvo. E de uma certa forma, eles são responsáveis por esta morte na Formula 1. E quando o contador volta ao zero, temos de repensar tudo no sentido de ver onde erramos e o que poderemos fazer para corrigir. E a FIA tem essa obrigação.

Quanto a Jules, lembro de uma frase de Graham Hill, que sobreviveu a dezoito temporadas e dezenas de companheiros mortos entre 1958 e 1975. Certo dia, disse isto: "Se o pior acontecer, é porque paguei o preço da felicidade em vida". O que mais me entristece, mais do que uma vida chegada ao fim demasiadamente cedo, é a sensação de que tudo isto poderia não ter acontecido.

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