O dia mal tinha amanhecido e Alexandre já estava de pé, à janela, há algum tempo perscrutando o horizonte, onde se via o Mar do Norte até ao horizonte, em modo de reflexão. De tronco nu e jeans vestidos, olhava para aquele vazio, e as imagens do seu acidente na véspera e subsequente não-participação na prova da tarde o tinham deixado assim: triste, algo deprimido. Teresa viu-o dessa maneira quando acordou e descobriu o lugar vazio na outra parte da cama. Observou-o e levantou-se para ir ter com ele, abraçando-se com força e trocando um beijo.
- Bom dia.
- So se for para ti, sorriu.
- Não digas isso, fiquei aflita quando te vi virado no solo. E depois o capacete todo riscado... assustei-me.
- Como podes ver, esta noite não fizeste amor com um fantasma...
- Não digas isso, respondeu algo zangada. O que me garante que hoje não morre ninguém?
- Pois... ninguém. Tento não pensar nisso. Sou apenas sortudo.
- Enfim... vou lavar-me. Hoje é dia de trabalho para mim.
- Está bem. Olha, diz uma coisa: os teus colegas não se importam que eu durma contigo?
- Eles tem é inveja de mim, não de ti.
- Nesse aspecto, os teus colegas têm razão. Do lugar onde estou, posso dizer que admiro o melhor rabo do hemisfério ocidental, afirmou Alexandre entre risos.
Teresa respondeu estendendo o dedo médio à entrada da casa de banho...
Pelas dez da manhã, Alexandre estava nas boxes de Zandvoort, a dar uma entrevista a uma revista britânica, dando mais detalhes sobre o seu acidente da véspera. Sobre o seu futuro, dizia apenas:
- Em principio, eu terei um chassis Apollo em Charade, o que até é um salto para mim, porque mesmo dando o máximo, aquele chassis já tinha os seus dias contados. Não é desenvolvido há muito, há chassis mais novos a aparecer a cada corrida e claro, ficamos para trás. Portanto, até foi bom ter aproveitado bem as chances que tive.
- E no final do ano?
- Vamos a ver. Não escondo que queria estar numa das oficiais, mas a unica coisa que tenho é um lugar nas Interseries em 71, com o John O'Hara a meu lado. Veremos, a época vai a meio, é imenso tempo.
- Obrigado, Alex. É chato veres a corrida do camarote...
- Acontece.
Junto da equipa, Alexandre observava os seus colegas a correr na pista, fazendo a Curva Tarzan com um certo ar de nostalgia. Ficou assim durante mais de meia hora, com Sinead a vê-lo à distância.
- Estou a ver o teu ar...
- É, não é? Provas isto e já não queres outra coisa.
- Devias dar graças por estares vivo.
- E dou. Só que queria ter o carro inteiro para hoje. Enfim... O teu irmão?
- Lá em baixo, com o Pete.
- Vou descer, ter com eles.
Sinead viu os três, e depois Teddy Solana, a falarem à distância sobre o que previam da corrida. Não seria nada fácil, mas os dois pilotos estavam confiantes num bom resultado. No final da conversa, John falou com Alex:
- Tiveste sorte, rapaz.
- Pois tive. Estraguei o teu carro...
- Ahah! Não te preocupes, os carros arranjam-se, nós é que não. É por isso que o essencial é estarmos inteiros.
- É verdade. Só que...
- Só que?
- Vai ser dificil ver-vos ali e eu aqui.
- Compreendo-te, rapaz. Tens talento, sabes-o e não podes demonstrá-lo. Tenho de te tirar o chapéu por dois motivos.
- Quais?
- Tens muito talento. Não pensei que pudesses tirar mais alguma coisa daquela lata velha. Digo-te isso porque nas últimas corridas, já tinha dificuldade em ir rápido.
- Mas ganhaste no México...
- Com o piloto que estava à minha frente a quebrar, amigo, era uma questão de estar no lugar certo, à hora certa. Mas digo-te, pelo que vi e me contaram no Mónaco, és mesmo bom. E ainda bem que o Pete te vai dar um chassis para ti.
- Obrigado. E qual é a segunda coisa?
- És o primeiro gajo que conheço que não se atira à minha irmã...
Ambos riram às gargalhadas. Foram todos almoçar e Alex, no final, disse a Pete:
- Estou hesitante.
- Em quê?
- Ver a corrida. Não sei porque estou aqui. Mas há mecânicos e material meu, se calhar existe uma boa razão para ficar.
- Tu gostas disto, vais ficar.
- Pelo contrário. Sinto uma certa ansiedade em vê-los nos carros e eu a ficar de fora.
- Anda, fica por cá. Acho que és uma boa presença, não dás nas vistas nem fazes barulho na equipa...
- Tens razão. Fico por cá.
Na grelha, via-se na primeira fila os carros de Reinhardt e Beaufort, num duelo cada vez mais distinto entre Matra e Jordan, com BRM e Apollo a espreitar. O'Hara dirigiu-se para o carro e sentou-se, colocando o seu capacete integral. A seu lado, Sinead estava com ele, falando sobre os obstáculos que tinha à sua frente e as possibilidades de um pódio naquela tarde, enquanto que Pete estava na fila de trás, a trocar impressões com Teddy Solana. Na boxe, Alex fumava um cigarro com Pam a seu lado.
- Ansioso?
- Sim. E um pouco frustrado. Mas um bocado e acabo deprimido...
- Tem calma, vai tudo correr bem.
- Espero que sim.
Os minutos esgotavam-se e os carros se aproximavam da grelha definitiva. Reinhardt e Beaufort alinhavam-se, seguido do resto do pelotão, e os motores roncavam no limite, nos momentos que antecediam a partida para o GP da Holanda, quinta prova do campeonato. Quando o comissário holandês baixou a bandeira, todos se lançaram em direção à Curva Tarzan, com Reinhardt a escorregar um pouco para a direita, bloqueando Beaufort, mas permitindo a ultrapassagem de Van Diemen, que fica com a liderança. O'Hara passou Carpentier e atacava Beaufort no final da primeira volta, mas o motor V12 da Matra conseguia colocar em respeito o Cosworth V8, e o irlandês não conseguia apanhar o francês, lider do campeonato.
- Está complicado.
- Sim, o motor é bom nas rectas. Ele tem de o apanhar nas curvas, Pete, dizia Alex. Qual é a diferença?
- 0,3 segundos. Pode ser que se fizer a Tarzan mais tarde...
- Não creio. Aquilo está escorregadio por ali, pelo que me contam. Não está tempo para taradices.
O'Hara seguia sempre atrás de Beaufort, lutando pelo terceiro posto, enquanto que Reinhardt perseguia Van Diemen, que tentava descolar do Jordan, mas não conseguia. No quinto lugar, Gilles Carpentier tinha dificuldades em largar Teddy Solana e Bob Turner, que o seguiam. O francês tinha alguns problemas na direcção, pois andava a corrigir as trajectórias demasiadas vezes. Na quinta volta, começou a ver que tinha de corrigir o voltante mesmo em recta... e não se recordava de ter tocado em alguém. De facto, tinha um problema de suspensão frente direita, a mais castigada na pista holandesa, mas era mais por defeito do que por toque. E este cedeu na curva Tarzan, quando tocou no travão, no inicio da volta 16. Entrou em pião e saiu na caixa de gravilha. Felizmente, não ficou ferido, mas a sua tarde terminava ali.
- Quarto e quinto, pelos vistos.
- Parece, mas... olha, onde anda o Van Diemen?
No inicio da volta 22, um elemento mecânico qualquer da Ferrari deve ter cedido no carro do belga, pois este estava a andar lentamente, encostado na faixa direita da pista, caminhando lentamente para a boxe. Quando chegou, entre o devagar e o parado, o belga saiu do carro e explicou aos seus mecânicos:
- Fiquei sem o acelerador. Carrego no pedal e este não responde.
De facto, depois de espreitarem no carro, verificam que o cabo do acelerador se tinha partido, desgastado pelo uso. Mais uma corrida frustrante para o piloto belga. Agora, o lider era Beaufort, que tinha passado Reinhardt, e este era pressionado por John O'Hara. E os três tinham ganho uma vantagem de doze segundos em relação à concorrência. E duas voltas depois, O'Hara era segundo.
- Sim senhor. Agora, ele que acabe a corrida, disse Alex entredentes.
A partir daqui, as coisas tendiam a piorar para a Apollo. Na volta trinta, um fumo azul sai do carro de Teddy, indicando perda de óleo. Teddy para no Panoramabocht e sai do carro, preparando-se para fazer o longo caminho para as boxes. O mexicano vê passar os seus concorrentes na pista, todos a darem o seu máximo, e ele a ir lentamente em direcção das boxes. A caminhada durou uns cinco minutos, e quando chega lá, começa a ouvir nos altifalantes um aviso, primeiro em holandês e só depois em inglês. Alertado, para para ouvir o seguinte:
"Atenção, o carro numero 11 de John O'Hara sofreu um acidente na Curva Scheivlak e pegou fogo. Os controladores decidiram colocar bandeira vermelha para interromper a corrida".
De facto, da cabina do director de prova, os carros começaram a parar na pista enquanto que um outro comissário agitava outra bandeira vermelha. Ao longo da pista, os comissários agitavam as bandeiras e nas boxes da Apollo, a correria era muita, e as caras eram de ansiedade. Muita ansiedade.
- Pete, o que aconteceu?
- Não sei, só nos disseram que ele se despistou e o carro capotou várias vezes. Nem sabemos se está fora ou dentro do carro...
Naquele momento, saia o carro de bombeiros em direcção do local, bem como uma ambulância. Aparentemente, havia extintores, mas o fogo era tal que eles não conseguiam controlar. Era o primeiro sinal da gravidade da situação.
Os minutos passavam e não havia noticias do seu estado. Os socorristas conseguiram tirar O'Hara do carro e levá-lo para a urgência, ainda no circuito, antes de o levarem para o Hospital mais próximo, em Amsterdão. Sinead decidira acompanhar a ambulância o melhor que podia, acompanhado por Pam, a mulher de Pete. Teddy queria saber alguma coisa, mas esbarrava no "não sei" de Pete. "Não nos dizem nada, nem se estava muito queimado.
Teddy foi ver Philippe de Beaufort, que lhe disse:
- Francamente, não vi nada. Tinha passado na Hugenholtz e provavelmente ele queria reagir, mas não sei o que se passou. Só o vi a voar no meu espelho e mais nada. Pergunta ao Bob.
- Bob? Bob? O que tu viste?
- Só o vi a pegar fogo, "old boy". Deve ter havido uma ruptura no tanque. E não o vi a saltar fora do carro.
Não o vira porque ele não podia. O carro tinha um sistema de cinto de quatro pontos, que o impedia de ser cuspido para fora do carro em casos como este. Algo que já se usava desde há uns dois anos, e que praticamente toda a gente usava, alguns com muita relutância. Se o carro ardeu completamente e ele ficou lá preso, podia-se esperar o pior...
Os minutos passavam, e a ausência de noticias era cada vez mais angustiante. Meia hora depois, o local estava limpo e fez-se nova partida para que fizessem as restantes 57 voltas, pois o acidente ocorrera na volta 33. Beaufort não foi incomodado até ao final, depois do atraso de Reinhardt na volta 68, com a caixa defeituosa, pois ficara sem a segunda velocidade, caindo até ao quarto lugar final, atrás de Bob Turner, o segundo, e Peter Revson, o terceiro. Bob Bedford foi o quinto e o Ferrari de Toino Bernardini fechou os pontos. Quando Philippe parou o seu Matra com os mecânicos, comissários e demais imprensa à sua volta, para celebrarem a sua vitória, algumas caras estavam fechadas. Via o seu director desportivo e perguntou:
- John?
- Está vivo, mas... tem o corpo todo queimado. Teme-se o pior.
- Mon Dieu, afirmou, com um longo suspiro.
A sua cara fechou-se, masmo recebendo os parabéns de todos. Foi para o pódio receber a gigantesca coroa de louros, antes de ouvir a Marselhesa, tocada em sua honra. A sua cara continuava fechada, e depois de receber o troféu, rumou às boxes sem falar com mais ninguém sem ser o director, que lhe perguntou:
- Está em que hospital?
- Rainha Guilermina, acho eu. Mas não tenho certeza. Pelo que me contam, tem queimaduras em 80 por cento do corpo, de terceiro grau.
Philippe ouviu isto e foi direito para a sua caravana, procurando uma boleia para o hospital. Quando lá chegou, viu Alexandre a passear no paddock, procurando pela sua namorada. Ele o viu e quis saber da situação, ao que respondeu, abanando a cabeça em sinal negativo.
- Se já não morreu, está para morrer, Philippe. Falei agora com o Pete, e os médicos não dão esperanças. Estão todos lá, o Pete já foi e agora quem cuida disto é o chefe dos mecânicos. Eu ando à procura da Teresa, que deve estar a trabalhar ou coisa assim.
- Qual é o Hospital?
- Rainha Guilhermina, acho eu. Mas vai perguntando por aí, que devem saber.
Philippe olhou para Alex e agradeceu. Deram um abraço e separaram-se. À medida que ele se aproximava o seu carro, refletia sobre o que tinha acontecido e os "flashes" que tinha visto quando o carro se despistou atrás de si. Pensou por momentos se tinha tocado nele, mas isso dissipou-se logo da sua cabeça. Ao sentar-se no carro, pensou em Bruce McLaren, morto dezanove dias antes, e pensava que era um pesadelo em continuo. Um piloto morto, outro piloto que poderia morrer... quantos mais é que iriam acabar violentamente as suas carreiras e vidas até que se fizesse alguma coisa? E quem era o próximo a fazer parte da lista?
(continua)
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