quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Grand Prix (numero 61, catharsis)

Para Alexandre, aquele foi um dia de aniversário triste. Debaixo do calor andaluz, ele foi uma das dezenas de pessoas ligadas ao automobilismo que foi assistir ao funeral do seu amigo Alvaro Ortega Velez, que ocorreu no cemitério de Almeria, a sua cidade natal. Ver a sua vida encurtada aos 25 anos, horrivelmente queimado, era de facto um final que não se desejava a ninguém, incluindo ao seu pior inimigo. Dois dias depois, estava de volta a Monforte para descansar em sua casa. Um dia, uma quinta-feira, foi passear pelo centro. Se as coisas tivessem corrido normalmente, ele estaria em Charade para correr o GP de França, mas ainda não tinha carro e a Apollo decidira não ir a Charade em sinal de luto pela morte de John. Por esta altura, ele não sabia quem o iria substituir, e se essa pessoa que eventualmente correria no seu lugar faria a estreia em Brands Hatch.

Aquilo que sabia neste momento é que voltaria à Formula 1 em solo britânico.
Antes de ir espairecer numa esplanada no centro da cidade, foi a uma banca de jornais no sentido de comprar publicações para ler. O jornal do dia e umas revistas. A banca pertencia a uma senhora já idosa e da sua filha, que mantinham o negócio há anos, Conhecia-as há muito tempo, pois era nessa banca que o seu avô comprava os jornais, especialmente os vindos de Coburgo. Nessa quinta-feira, Alexandre demorou um pouco mais a ver o que estava pendurado na banca, quando a filha lhe disse:

- Alexandre? A minha mãe quer vê-lo.

Ele ficou espantado. Conhecia as duas, mas em relação à mãe, não trocaram muito mais do que meros cumprimentos, algo que no caso da filha, que tinha a mesma idade dele, chegando até a cruzarem-se na escola primária, a coisa era um pouco mais intima. Mas não muito.

- Estranho, porquê?
- Diz que gostaria de te ver.
- Quando?
- Quando puderes, de perferência hoje.

Se já estava intrigado pela conversa, mais intrigado ficou. Toda a gente ia a aquele quiosque na praça central da cidade, que tinha a sede da Alcadaria Municipal, e não muito longe do antigo palácio dos Monfortes, agora convertida na sede do Automóvel Clube local, e onde passa a avenida principal, antiga meta do circuito de Monforte, que naquele ano, na última semana de Setembro, iria acolher a Formula 2. Aquilo que ele esperava que fosse uma tarde descansada, já não seria mais, pois era pessoa muito educada e solicita, sempre que fosse possivel.

- Está bem. Ela está em casa?
- Está sim.
- Então vou visitá-la, afirmou.

Saiu dali, rumo a casa dela, depois das indicações dadas. Sem adquirir os jornais e as revistas que queria, pegou no Boca de Sapo da sua mãe e rumou até lá. Quando chegou, estacionou o carro a uma distância confortável, para fazer o resto do percurso a pé, pois aquela zona era estreita para um carro daqueles. Andou até à porta, e quando chegou, hesitou um pouco. Olhou para a casa, como que a ver onde estava, e de repente abriu-se a porta de madeira, com uma senhora de negro a dizer:

- Venha, estava à sua espera.

Intrigado, Alexandre hesitou um pouco. Vinha ali à aventura, movido pela sua curiosidade intrinseca, mas desconhecendo-se no que se iria meter ou qual seria o resultado daquela tarde. Mal entrou, olhou para a senhora e a sua mente trabalhava fervorosamente, pois tinha ideia de que já tinha visto a cara de algum lado, sem ser no quiosque. Quando ela abriu a boca, lembrou-se:

- Caro Alexandre, esperei toda a minha vida por este encontro. Você é o terceiro membro da familia que acolho nesta humilde casa.
- Então é você a tal... mas porquê eu?
- Porque agora, és um ilustre filho da terra.

Alexandre sorriu com essa expressão. Incomodava-lhe a coisa, pois ainda não tinha realizado nada de relevante. O relevante, para ele, tinha sido o seu avô. E ele descobriu também que os rumores eram verdadeiros: a senhora do quiosque sabia ver o futuro.

- Vai ser bom ou mau?
- Vai depender de como reagirás ao que tenho a dizer.
- Então sabe que é uma profissão de risco.
- Sei, sim senhora. Mas vai deixá-lo de ser um dia.
- É bom saber disso, mas até lá...
- ...até lá, serão precisos mais alguns sacrificios. Mas vamo-nos sentar. Tem alguma foto sua?

Alexandre e a senhora moveram-se para a sala ao lado, onde numa mesa de madeira, sentaram-se em lados opostos. Entretanto, uma porta abre-se e era a filha a chegar, para ver como é que as coisas se passavam. Ele tirou da carteira uma foto sua com Teresa, tirada há coisa de três semanas e a foi buscar naquele dia ao estudio de fotografia, onde fora revelado. Entregou-a e disse:

- E agora?
- Agora pode sair da sala. Daqui a bocado vou ter consigo.

Os dois sairam de casa e foram apanhar o ar fresco daquele dia de Julho. Ele foi para um muro proximo dali e sentou-se, enquanto que a rapariga está a seu lado. Sem muito com que fazer, mostrou-lhe as fotos do seu convivio com Teresa, algumas semanas antes.

- Há quanto tempo é que namoram?
- Desde há um mês. Ainda estamos a habituar-nos.
- E ela é de?
- Coburgo. Trabalha num jornal, cruzei com ela em Espanha, porque a mandaram para fazer a cobertura do GP de Espanha, em Abril.
- Foi rápido.
- Pois foi. Não sei, engracei com ela no primeiro momento. No que vai dar? Não sei e perfiro não saber, confesso.

Passado um instante, voltou à conversa:

- Quem é que já veio aqui?
- Não posso revelar.
- Porquê?
- É assim mesmo. A minha mãe perfere que se saiba por si mesmo.
- Mas isso não será tarde?
- Veremos...
- E não conta nada do que se passa aqui?
- Nem sempre. Umas vezes sim, outras não...
- E já agora, não é daquelas que sabe os numeros da Lotaria da semana seguinte, pois não?

Ela riu-se.

- Não. Isso ela não sabe.
- Mas perguntam?
- Ela não funciona assim. Não é do género "amanhã vai haver uma tempestade". Ela precisa de sentir as coisas para depois dizer.
- É assusador, não é?
- Nâo sei, já deve estar habituada...
- Eu se tivesse um dom desses, ficaria assustadíssimo. O que é que acontecem às pessoas a quem lhes conta o futuro? Aceitam bem?
- Quando lhes contam tudo, não aceitam muito bem. Mas isso é raro. Ela não conta o fim, ou se conta, e generalizado. Nâo te preocupes, decerto vai te dizer que chegas a velho.
- No desporto que escolhi, é como jogar à roleta russa... em cada corrida que ando, parto sempre com cinquenta por cento de chances de morrer. Este mê vi morrer quatro colegas meus, e a dois deles, devo ter sido dos últimos a conversar antes das suas mortes horriveis. Vi-os a agonizar, terrivelmente queimados, com os outros a rezarem por um milagre que nunca aconteceu, nem acontecerá. É triste, sabes...
- Um dia isso passa.
- Ahh... acredito, mas a que preço?

De repente, a porta abre-se, e ela diz:

- Podem vir.
Alexandre começou a caminhar devagar. Sabia agora quem era, e dentro de si, temia o que ela tinha por dizer. A fotografia que tinha dado era qualquer uma daquele álbum que tinha ido buscar naquela manhã no estudio de fotografia. Entrou de forma hesitante, sentou-se na salinha e ouviu o que tinha a dizer.

- É uma bela moça, a sua. Como se chama?
- Teresa.
- Vejo que já encontrou a sua mulher.
- Quero acreditar que sim.
- Eu não acredito, eu sei. Vocês acabarão por se casar e serão muito felizes.
- É bom saber que acabarei por casar.
- E terão filhos. Dois, pelo menos.
- É bom, é bom... ver que isto terá final feliz.
- Vi que se conheceram numa grande cidade... mas não é Coburgo.
- Deve ser Madrid, conhecemo-nos lá. Ela é jornalista no Liberal.
- É uma bela moça. Vai durar, e terão muito amor para dar, acredite.
- Tenho de acreditar, não é?
Ambos calaram-se. O ar grave da senhora manteve-se durante todo o tempo, e ele perguntou:

- Há mais alguma coisa?
- Você conduz carros estranhos, caro Alexandre.
- Sou piloto de automóveis. Pensava que já soubesse disso.
- Saber, sei. Mas vê-los... ainda não me habituei a isso.
- Acredito. Nem toda a gente se habituou, a minha mãe é uma delas...

Ela olhou uma ultima vez para o seu retrato, e disse:

- Não tenho boas noticias.
- Já desconfiava...
- Há um preço a pagar por tudo isto, sabe? Aliás, temos todos por pagar o preço por andarmos neste mundo.
- Acredito que sim.
- E uns pagam um preço maior do que os outros. E para seres totalmente feliz, tiveste de ceder algo. Estas contas foram saldadas antes de tu nasceres, antes de todos nós termos nascido. Foi isso que os teus amigos pagaram, infelizmente.
- Vou acabar como eles?
Não houve resposta.

- Considero esse silêncio como um sim, não é?

Alexandre calou-se. Deitou um largo suspiro e segurou as lágrimas por um momento, para perguntar.

- E esse fim acontecerá quando?
- Quando conseguires tudo que alcançares. Tudo. É esse o preço pela felicidade em vida, Alexandre. Tens dez anos para consegui-lo, e vais consegui-lo. Está traçado nas estrelas. Espero que saibas usar sabiamente esse dom. Iremos falar de quando em quando durante esta década.
- Mas não me dá um dia e uma hora?
- A idade de Cristo.
- Hã?
- É a unica coisa que poderei dizer-lhe. Agora, cabe a si. E por mim, vou descansar, pois hoje está uma tarde de calor. Gostei de ver, Alexandre, espero que não fique zangada comigo.

Alexandre ficou quedo e mudo. Perguntou:

- Como é que sei que está errada? Como é que sei que pode ter sido enganada?
- É o que todos me perguntam, Alexandre. Todos. Apenas lhe digo que o tempo é a melhor resposta, e infelizmente - ou felizmente - acertei sempre. Não falhei uma. Até sei qual vai ser o meu fim. Daqui a muitos anos, acabarei a minha passagem por esta terra, depois de ver o meu neto crescer, respondeu, exibindo o primeiro sorriso da tarde.

Alexandre e a filha da senhora sairam da casa e deslocaram-se para o carro dele. Perguntou se queria uma boleia para o centro, mas ela disse que hoje ficava por ali. Questionou:

- Um fim breve... não queria isso. O que vou ganhar com tal coisa?
- Mais do que julgas, acredita. Teremos o resto das nossas vidas para conversar. Afinal, vais sempre ao nosso quiosque.
- Lá é verdade... lá e verdade. Agora que te disseram como vai ser o teu resto da vida, é melhor gozá-la, não é?
- É esse o espírito.

Alexandre olhou para o céu limpo, sem nuvens. Estavam numa zona de sombra, e contemplando a paisagem em volta, afirmou:

- Tem dias que odeio a minha vida. Mas se for assim, aceito-a.

(continua)

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