quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Grand Prix (numero 60 - o terceiro golpe, 2)

(continuação do capitulo anterior)

Após um momento em silêncio, Bob vira-se e diz.

- Belo discurso, embora não tenha percebido patavina do que disseste.

Alexandre riu-se.

- Obrigado, Bob.
- Eles contaram-me o que se passou. Sentes-te revoltado pelo que se passa.
- Revoltado e mais alguma coisa. Tenho dúvidas e medos que preciso de enfrentar agora.
- Entendo. É muita coisa para absorver em um mês.
- É... aconteceu-me de tudo. Dois dos nossos morreram, tive um acidente feio, com marcas no capacete. Já tiveste algo parecido, Bob?
- Acho que sim. Sabes, tenho de te perguntar uma coisa.
- O quê?
- Tu és familiar do Monforte, do GP sildavo?
- Sou. Sou o neto do fundador.
- Ahhh... "lovely chap", o teu avô. Conheci-o há uns dez anos, num evento de formula Libre. Gosto muito dos vossos vinhos. Como se chama aquilo?
- Moscatel. É um vinho doce. Um bom digestivo, como o Porto que andas a tomar agora.
- Têm aqui?
- Não. Já andei a ver, aqui não tem.
- É uma pena. O teu avô já morreu, suponho.
- Sim, há cerca de dois anos e meio. Agora quem toma conta do negócio é o meu pai e um dos meus tios.
- É um negócio de familia, portanto...
- É. Não me ajudam monetáriamente, mas aceitam aquilo que faço.
- Estou a ver... posso te dizer uma coisa, Alex?
- Diz, Bob.
- Compreendo a tua revolta, sabes? Ver os nossos amigos a morrerem que nem tordos e nós não fazemos nada para os impedir... é uma inevitabilidade, sabes.
- Mas os tempos mudam, Bob.
- É verdade. Está-se a fazer muita coisa nessa direcção, e ainda bem. Ainda me lembro do tempo que nós corriamos sem "rollbar", sem cinto e com fardos de palha nas bermas em vez dos guard-rails. Poderiamos morrer na colisão de uma simples árvore... e ainda me lembro de socorrer o Scott Stoddard, em Spa, há uns quatro anos. Cheio de gasolina no cockpit, e com a pele a cair, coitado. Ele depois teve a ideia de colocar uma chave de fendas no carro, caso o volante o prendesse em alguma colisão.
- Bela ideia. Tive sorte, apenas tirei o cinto e saí do carro... com o capacete marcado.
- Avançamos muito, caro Alex, e ainda não é suficiente. Vai chegar o dia em que correr será tão seguro que passarão décadas sem que nós morramos. Pode não acontecer na nossa geração, mas temos de fazer para que a próxima, os nossso filhos e netos, queiremos ter, não passem mais aquilo que nós estamos a passar. É a nossa esperança.
- Tens razão.
- E queres um conselho de amigo? Canaliza essa raiva para a tua condução. Tenta ganhar a corrida em honra do Bruce e o John. Tenho a certeza que ficariam felizes com isso.
- Vou pensar nisso.
- Não pense, "old chap", faz! afirmou, dando uma palmada nas costas antes de sair dali rumo ao quarto.
- Fica por aí, que os teus amigos já aí vêm, concluiu, mostrando um sorriso daquele bigode.

--- XXX ---

No dia seguinte, começaram as primeiras corridas do dia. Havia uma corrida de Formula 3 local, mais a primeira meia-final da corrida de Formula 2. Se no primeira corrida não houve nada de especial, na segunda, onde Monforte partia da tal décima posição, tinha de acabar o mais acima possivel para ter uma boa hipótese de largar na final numa boa posição. À sua frente tinha o Alpine de Trochowsky e o Tecno de Guarini, e mais alguns carros, liderados pelo Jordan de Pedro Medeiros. Tinha de batalhar para chegar à frente, e não era fácil, pois a corrida só tinha vinte voltas.

Quando a bandeira foi dada, Monforte faz um arranque relâmpago e passa Trochowsky, Guarini e o Jordan de Brian Hocking. Agora tinha na sua frente os Matra de Picard e Brasseur, o Alpine de Van Diemen e os Jordan de Medeiros e Reinhardt. Ao longo da corrida, a sua concentração estava alta e tentava fazer as curvas no máximo e sem erros, travando o mais tarde possivel e acelerando o mais cedo possivel, colocando o carro no limite. Aliás, todos os carros estavam no limite, dando o seu melhor para ficar na final, onde somente vinte carros iriam participar. Monforte aproveitou a corrida para chegar em dez voltas ao terceiro posto, atrás apenas de Van Diemen e Reinhardt, e controlando a distância para Medeiros, que o ameaçou até que um componente se ter partido e ficado na berma.

A medalha de bronze naquela primeira corrida tinha dado uma boa colocação para a prova principal, cuja partida estava marcada para as dezasseis horas. Aproveitou para ver a segunda corrida, onde estava o seu amigo Ortega e Bob Turner, num Matra privado, pintado com as cores da organização para abrilhantar esta "Coupe de Vitesse" em Rouen Les-Essarts. Turner acabou em sexto, numa prova ganha por Antti Kalhola, com Ortega também na terceira posição. Isso significaria que ambos iriam alinhar lado a lado na segunda corrida. E o mais surpreendente era ver o carro russo, guiado por Korjus, ter chegado no oitavo posto, dando passagem para a final, deixando toda a gente curiosa pela prestação da máquina soviética.

- Sabes o que já ouvi por aí?, disse Brasseur.
- O quê?
- Esse pessoal do Leste não está para brincadeiras. RDA, Checoslováquia, Hungria... Há gajos tão bons como nós. E aparentemente, anda aqui pessoal desses países a falarem com a FIA sobre a ideia do Europeu se alargar ao Leste.
- Jura? E esse pessoal precisa do dinheiro ou quer servir-nos para fins de propaganda? perguntou Guarini.
- Desconheço. Mas se o motociclismo corre na Checoslováquia e na RDA, porque não os carros? questionou Brasseur.
- O que andam aí a falar? questionou Ortega.
- Os nossos amigos vindos do frio querem alargar-se. Falam que a Formula 2 pode ir à Hungria, Polónia, RDA e essas coisas todas.
- A sério?
- Aparentemente, sim. Mas já ouvi melhor.
- O quê?
- A Formula 1 e Formula 2 vão se alargar ao resto do mundo.
- Mas já está.
- Que nada! Um dos jornalistas amigos meus me disse que se encara a ideia de que pode haver corridas na Austrália e na Nova Zelândia, para além de um regresso à Argentina. E também se fala no Brasil. Quanto ao Leste... não me admiraria, pois este ano vamos à Austria.
- Pois é... dizem que o novo circuito é muito veloz. Tão veloz como Spa-Francochamps, afirmou Guarini.
- Esperemos que não tenha o mesmo tipo de segurança de Spa, senão estamos tramados, respondeu Monforte. Ah! E em 71 vamos ter um GP da Finlândia, cortesia do Temple.
- Ah é? Onde.
- Num sitio chamado Keimola, arredores de Helsinquia. A Formula 2 e a Interserie já correram lá, é anti-horária e um pouco lenta. Vamos a ver se vale a pena...
- Veremos se vale a pena. Mas neste momento preocupo-me com o tempo. Parece que pode chover ainda hoje, afirmou Ortega ao olhar para o céu cinzento.

--- XXX ---

Pelas 16 horas, todos os carros estão alinhados na grelha para a corrida principal da Formula 2. O facto de ser uma corrida alargada a todos fez com que alguns dos candidatos à vitíoria nessa corrida, como Medeiros, tivessem ficado de fora desta final, logo, não teriam pontos. Por ter sido o vencedor mais rápido, o finlandês Kalhola era o primeiro a partir, seguido por Pieter Reinhardt, Na segunda fila estavam Bob Turner e Patrick Van Diemen, enquanto que na terceira ficariam Alexandre de Monforte e Alvaro Ortega. Na quarta estavam Charles Dupont e Pierre Brasseur e na quinta ficavam Michele Guarini e o Matra de Gilles Carpentier. O soviético Korjus era 16º, atrás de Brian Hocking.

Na partida, Kalhola tentou distanciar-se dos seus pilotos mais velhos, que sabia serem uma cobertura para a vitória na corrida, enquanto que Monforte aproveitou o bom arranque para passar Turner e colar-se a Van Diemen. O belga deu o seu melhor para se defender, mas sentia a pressão de Monforte, que por sua vez era pressionado por Ortega, Dupont, Guarini e Carpentier. As máquinas eram iguais em termos de potência, incluindo até o Mirny de Korjus, uma cópia fiel do Matra de Formula 2 de 1968, com uma diferença de doze ou 14 cavalos sobre os restantes carros do pelotão, que corriam com motores de 1.6 litros aspirados, dando quase 240 cavalos.

Todos lutavam pela posição, tentando ultrapssagens em sitios quase impossiveis, em lugares quase apertados, demonstrando a sua alta agressividade. Tinham apenas 25 voltas para demonstrar que eram os melhores, e faziam, disputando cada metro de travagem, aceleração e os cones de ar que provocavam, ao correr muito juntos. Na sexta volta, Monforte passa o Alpine-Renault de Van Diemen e começou a sua cavalgada solitária para apanhar Reinhardt e Kalhola. E de repente, o tempo, que sempre esteve encoberto, dá lugar a uma chuva miudinha, o suficiente para que em poucos minutos, os pilotos sentem que está a ficar como que se fosse manteiga derretida, e tem de levantar o pé mais cedo.

Com todos a abrandar um pouco, Monforte faz exactamente o contrário: acelera. Parece ser uma manobra suicida, mas o sildavo adapta-se rapidamente às condições e consegue "comer" a diferença que tinha sobre os dois pilotos, ficando junto deles na volta 14, e os atacando logo a seguir. Mas logo atrás, nem todos os pilotos ficam com consciência da mudança do tempo, e arriscam-se ainda mais a cada minuto que passava. Ortega e Dupont estão juntos a tentar apanhar Van Diemen, e tentam dar o melhor nesta pista progressivamente escorregadia.

E na volta 16, o desastre acontece em dois locais diferentes, por dois motivos diferentes. Quando desciam a caminho da Virage de Noveau Monde, Ortega perde os travões e bate forte na traseira de Dupont, acabando os dois na berma. O francês estava quase parado e a virar para a direita, quando recebeu em cheio o Tecno descontrolado do piloto espanhol. Os dois carros imediatamente se incendiaram, fazendo com que os comissários acorressem ao local e tentassem tirar os pilotos presos nos carros.


Mais atrás, o Alpine de Trochowsky ia atrás do Jordan de Hocking e o carro do soviético, quase no final do pelotão. Sentia desde há duas voltas que tinha dificuldades para curvar o carro e abrandara o seu ritmo. Mas quando ia a toda a velocidade para fazer a Virage Six Fréres, numa descida pela direita, o volante não obedeceu, atingindo o "guard-rail" em cheio e catapultando-se para fora dela, com o chassis totalmente destroçado. A vida de Pierre Trochowsky, de 27 anos, terminava imediatamente ali, enquanto que se desconhecia a sorte de Charles Dupont e Alvaro Ortega.

Como os carros não estavam na pista, a unica coisa que os comissários podiam fazer era assinalar os perigos aos pilotos, que passavam por ali. Alexandre viu a coluna de fumo pelo canto do olho e ficou angustiado. Esperava e desejava que nenhum dos seus amigos tenha sido envolvido nesse acidente. Estava concentrado em apanhar Reinhardt e Kalhola, mas depois de quase bater na Virage Samson, decidiu tirar o pé do acelerador e gozar o segundo posto, atrás de Kalhola. Quando a bandeira de xadrez foi mostrada, Monforte parou logo o carro e foi correr para a garagem, para saber de noticias. Viu André Barros e Pedro Medeiros e ambos estavam com semblantes carregados. Mal se aproximou deles, atormentou-os com perguntas:

- Quem foram?
- Em qual acidente?
- No Noveau Monde. Houve mais?
- Houve. O Trochowsky saiu em frente no Six Fréres, como o Marroc há dois anos.
- Aquilo não tem um guard-rail?
- Tem, mas parece que passou por baixo dela.
- Hã? A sério?
- Ninguém fala, mas teme-se que esteja morto, acrescenta Barros fazendo o sinal no pescoço, de cortar a cabeça. Monforte arrepia-se literalmente com o gesto.
- Isso aí... confirma-se?
- Quem me contou isso foi o chefe dos comissários. Ouvi-os a falar, a ele e ao chefe da Alpine. Pelos vistos, foi muito feio, nada resta do carro.
- Credo... e os outros?
- É o Dupont num Matra... e temo que seja o teu amigo Alvaro.
- Oh não! Não, por favor... dizia, abanando a cabeça. Tenho que ir ter com eles, disse logo a seguir.

Alexandre segue apressado para a boxe da Tecno, onde os mecânicos estavam cabisbaixos, a arrumar as coisas, e o director não se via por ali. Estava o chefe dos mecânicos, que lhe diz.

- O Alvaro está muito queimado, mas vivo. Foi para o hospital local, e o director foi ter com ele. Vai para o pódio receber o prémio, e vai ter conosco ao hospital. Lá saberemos mais dele.

Alexandre ficou mudo, à medida que ia ao pódio e recebia os prémios relativos ao seu terceiro lugar na corrida, mas que receberia os seus pontos do segundo lugar. Estava triste e o seu olhar era distante, preocpuado com a sorte de Alvaro, o seu companheiro de equipa.

As horas passaram e o desfecho era inevitável. Dupont estava em estado grave, mas não ficara muito queimado, à excepção do deu braço esquerdo, partido em três partes. Tinha o pulso esquerdo fraturado e algumas fraturas nas mãos, especialmente o polegar. As queimaduras eram de pouca importância, porque ele ficara consciente no acidente e conseguiu sair do carro com a ajuda dos comissários, pois também tinha o tornozelo e o pé esquerdo partidos. Iria ficar no hospital por uma grande temporada, mas estava vivo.

Mas Alvaro Ortega recebeu todo o impacto do carro, e este bateu bem no local do depósito de combustivel, que ficava ao lado do piloto, fazendo explodir o carro, pois era feito de magnésio, um material leve, mas inflamável. Mesmo que não tivesse morrido do impacto, teria morrido das queimaduras, pois estava coberto em noventa por cento do corpo. O bom gigante andaluz, nascido a 2 de Março de 1944, acabava a sua vida naquele dia de Junho de 1970, aos 26 anos. Quando soube da noticia, disse entre dentes: "a vida é tão injusta... quatro mortos em um mês, onde isto vai parar?".

(continua)

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