Não era algo do qual queria escrever no final do ano, mas por estes dias dei de caras
com um artigo da revista americana "Popular Mechanics". Ali, discutia-se sobre como é que a Formula 1 iria lidar com os carros elétricos e a tecnologia subjacente. Houve entrevistas com
Ross Brawn e
Toto Wolff sobre essa matéria, e ambos diziam que a ideia da Formula 1 se tornar eletrica estaria fora de questão para a próxima década.
Contudo, o artigo também falou de outra coisa. Primeiro que tudo, uma declaração de Wolff, o diretor da Mercedes: "A Fórmula 1 é um espetáculo audiovisual. Nós precisamos ficar chocados com a velocidade dos carros, ao olhar para eles e [também] pelo som dos motores". E segundo, a revista fala sobre um dilema: manter a tecnologia e fazer da competição em espectáculo caro, ou para embaratecer a competição, deve-se abdicar da ideia do avanço tecnológico em favor de um espectáculo puro e duro, agora que a Formula 1 está a ser governada por uma firma americana, a Liberty Media?
Eis um excerto do artigo, que coloca essa questão desta forma:
"Os motores híbridos [V6 Turbo] definitivamente trazem a inovação, mas eles são um pouco curtos em termos de emoção sensorial.
'Essa é a coisa embaraçosa', diz Ross Brawn, diretor-gerente de automobilismo da Fórmula 1, mais tarde naquele dia, num quarto de hospitalidade hermeticamente branco, dois edifícios e uma estrada mais adiante do circuito. "Todo mundo lembra o quão alto os carros costumavam soar". Outro V-8 grita na pista, seu som agudo entra no nosso santuário com ar condicionado, enquanto ele lança um sorriso. Brawn, que trabalhou com carros de Formula 1 desde o final da década de 1970, lembra um tempo onde se soava bem alto. "Nós costumávamos ter motores [cujo som] nos magoava os ouvidos", diz ele. Então, os híbridos chegaram e, "de repente você poderia conversar normalmente ao lado deste motor", ele diz.
Isso sugere questões existenciais para a Fórmula 1: no nosso futuro ambientalmente amigável, a série de corrida mais avançada do mundo ainda impulsionarão as inovações que impulsionam nossos carros de estrada, ou se tornarão em desporto puro, com o entretenimento como único objetivo? Ou poderia um campeonato totalmente elétrico ultrapassar a Formula 1 como o laboratório mais veloz do planeta Terra?"
Desde a primeira corrida de sempre, em 1894, que a tecnologia e a competição estiveram sempre de mão dada. Para conseguirem superar a concorrência, os construtores usaram sempre inovações nos carros que mais tarde colocariam nos seus carros de estrada, que apresentariam aos seus clientes, para efeitos de segurança, conforto e mobilidade. Um bom exemplo foram os travões (freios) de disco, usados pela Jaguar nas 24 horas de Le Mans de 1955, bem mais eficazes do que os travões de tambor que eram usados nos outros carros.
Mas qualquer nova inovação trazia algo que poderia ser batizado de "unfair advantage", mas tal coisa seria sempre superada por outra do qual a concorrência arranjaria sempre maneira de superar, ou ficar na frente. Sempre foi assim ao longo do século XX. E a Formula 1 foi o laboratório por excelência dessa inovação tecnológica, apesar das crescentes regras que apertaram a possibilidade de inovação.
É sabido que em 2021 irão aparecer novas regras na Formula 1, e as ideias passam por uma maior simplificação dos motores. Ter apenas um sistema de regeneração de energia, seja ele um MGU-K ou MGU-H, e também uma forma de aumentar o ruído dos motores, causa de imensas queixas desde 2014, altura em que os motores V6 Turbo foram introduzidos.
E é aí onde quero chegar: o fã de hoje em dia não quer saber de que tecnologia vai ser colocada no seu carro do dia-a-dia. Como é regido por emoções, deseja algo que lhe faça arrepiar, e acha que o ruído ensurdecedor dos V8 seria melhor, afirmando ser "a essência da Formula 1". Ler as caixas de comentários das redes sociais não é a melhor politica, mas há quem ainda chore pelos V10 e V12 atmosféricos, dizendo que os tempos de há 25 anos eram os melhores e que agora é tudo "nutella", usando a linguagem dos nossos dias.
Contudo, não quer saber que fora do seu casulo, está a acontecer uma revolução lá fora. Os carros elétricos são uma realidade, várias marcas fazem modelos para a estrada e já se contam por mais de três milhões os carros elétricos a circular nas estradas de todo o mundo. Apesar de ser uma minoria, toda a gente sabe que em 2018 surgirão modelos como Tesla Model 3 ou o Jaguar-I-Pace, carros que chegarão à classe média. A Tesla quer vender meio milhão de carros neste ano que vai entrar e é capaz de chegar a esse ponto.
Mas o fã não quer saber disso. Acha a Formula E uma "farsa", apesar de não querer saber que vão entrar oito marcas na competição, e que menospreza o seu barulho, comparando-os a liquidificadores. Ainda acha que esses carros são lentos, tem pouca autonomia e que em três anos, as suas baterias estão totalmente desgastadas. E que estão a ser obrigados a fazer por ordens governamentais. Nada mais longe da verdade, mas isso só demonstra que a sua mente parou algures em 1976.
E chegamos a este ponto, do qual provavelmente Ross Brawn e a Liberty Media deverá estar a pensar com os seus botões: a Formula 1 deve abdicar da tecnologia em favor do espectáculo?
Se formos ver bem as coisas, na América, as competições automobilisticas favorecem o espectáculo a favor das tecnologias. Os carros são semelhantes - vide a IndyCar e a NASCAR - e a tecnologia é tão igual que não permite muito desenvolvimento. Aliás, este está muito, mas muito limitado, porque querem que haja equilibrio entre pilotos. Querem uma prova decidida na última curva da última volta da última corrida do campeonato, ou seja, querem Interlagos 2008 a cada duas semanas, mas nem sempre isso acontece. Contudo, eles sabem que é isso do qual fazem com que as pessoas discutam isso na segunda-feira de manhã, e provavelmente venda mais carros da marca vencedora.
Avanços tecnologicos ou de aerodinâmica não existem. É verdade que poupam nos engenheiros e nos projetistas, mas a ideia do automobilismo como mesa de ensaio, acabou. E de uma certa forma, não ficaria admirado que é isso que eles desejam. Só que há certas coisas que a Formula 1 tem que essas competições já não. As equipas constroem o seu chassis, por exemplo, e algumas equipas gostariam de construir os seus motores, nem que seja por uma questão de orgulho. São linhas vermelhas dos quais ninguém quer ultrapassar.
Mas se a Liberty Media decidir que a Formula 1 deve abdicar progressivamente da tecnologia para dar lugar ao espectáculo, de uma certa forma, está a dar razão aos espectadores. Mas reparem nisto: boa parte dessas pessoas (e isto vem de um estudo de 2014) tem em média 35 anos, e tende a envelhecer. A migração da Formula 1 para canais fechados e temáticos cortou o cordão a uma geração mais nova, e para mais, começa a olhar para os carros elétricos como algo bom e está crescentemente a hostilizar os MCI (motores de combustão interna). E vocês sabem que as pessoas envelhecem e morrem, para dar lugar a uma nova geração, que não tem mais os pensamentos da geração anterior.
De uma certa forma, privar a Formula 1 do seu futuro poderá significar que correrá o risco de desaparecer numa ou duas gerações, porque os gostos mudam. A nova Formula E poderá ser a competição onde se pode albergar a tecnologia? Pode, mas por agora não. Os chassis e as baterias são iguais, embora haja liberdade nos "powertrains", onde poderão usar nos carros de estrada, que progressivamente serão mais velozes, mais potentes e as baterias serão mais duráveis. E mesmo a ideia de que os carros param a meio das corridas para fazerem uma troca de chassis, vai acabar em 2019, quando surgirem os novos chassis e baterias da competição, que terão de aguentar toda a corrida.
E ainda poderá aparecer outra competição onde a tecnologia poderá ter um papel importante. A RoboRace pode ser um "sideshow" à Formula E, mas o propósito é revolucionário: um carro autónomo a dar voltas a um circuito, tentando completar num tempo progressivamente mais veloz do que um carro humano. Dados os avanços recentes na tecnologia dos carros autónomos, feitos por empresas como a Tesla, Apple, Google e outros, esta competição poderá ser o berço de algo que poderá fazer avançar a tecnologia bem dentro do século XXI, dando os avanços necessários em relação à condução e à segurança. Apesar dos fãs torcerem o nariz, a ideia é apeladora.
A tecnologia no automobilismo continua a ser essencial, e vai fazer sempre parte dela. Contudo, a ideia de que certa competição tenha de ser a tal, isso poderá sempre mudar. Agora, o risco de transformar algo vibrante a algo irrelevante é o risco que se corre. Vivemos tempos interessantes de se seguir, isso é verdade, e a Formula 1 está no meio disto.